Não tenho muita experiência com armas, mas tenho muita experiência a realizar atos drásticos por desespero. E nunca, nunca mais volto a seguir por esse caminho. Como ela também não devia.
Mas a Wendy não está a ouvir. Segura a arma com as duas mãos e aponta-a ao outro lado da sala. Não tem o dedo no gatilho, mas a sua intenção é óbvia.
– Por favor, não faça isso – imploro-lhe.
– E está carregada – diz. – Pesquisei como verificar. Tem cinco balas dentro.
Não consigo parar de abanar a cabeça.
– Wendy, não quer fazer isto. Garanto-lhe.
Ela vira-se para me fitar, a maçã do rosto esquerda ainda púrpura do punho do marido, embora começando a esmorecer num tom amarelo.
– Que alternativa tenho?
– Quer passar o resto da sua vida na prisão?
– Já lá estou.
– Escute. – O mais suavemente possível, tiro-lhe a arma das mãos. Deposito-a de novo na secretária. – Não quer fazer isto. Há outra maneira.
-Já não acredito em si.
Imagino a Wendy a apontar a arma ao rosto de Douglas. Da forma como a segurava agora mesmo e o quanto tremia, provavelmente falharia mesmo de perto.
– Faz sequer alguma ideia de como disparar esta coisa?
Ela encolhe os ombros.
– Aponta-se a quem queremos matar e depois prime-se o gatilho. Não é nada de transcendente.
– É um pouco mais complicado do que isso.
Os seus olhos arregalam-se.
– Já alguma vez disparou uma arma, Millie?
Hesito por demasiado tempo. Sim, tenho alguma experiência a disparar uma arma. O Enzo estava convencido de que era uma boa competência a aprender, por isso fomos os dois algumas vezes ao campo de tiro. Fizemos um curso de segurança no manuseio de armas e obtivemos certificados. Mas nunca disparei nenhuma fora do campo de tiro. Não sou propriamente uma especialista.
– Mais ou menos.
Ela lança-me um olhar significativo.
– Millie...
– Não. – Agarro na arma e guardo-a de novo no falso dicionário. Fecho-o com um estalo. – Isso não vai acontecer.
– Mas...
O que quer que a Wendy estivesse prestes a dizer é interrompido pelo som do abrir das portas do elevador. Rapidamente, agarro no dicionário e enfio-o de novo na prateleira onde o encontrei enquanto a Wendy corre de volta para o quarto de hóspedes a uma velocidade surpreendente. Apresso-me a descer as escadas para que Douglas não perceba o que eu estava a fazer.
Douglas entra na sala de estar e parece ligeiramente surpreendido por me ver a descer as escadas. As suas densas sobrancelhas negras sobem-lhe pela testa.
– Julguei que estaria a preparar o jantar?
– E estou – garanto-lhe. – Está agora mesmo no forno.
– Compreendo... – Os seus olhos profundos estudam-me o rosto com minúcia suficiente para me fazer retorcer. –O que é o jantar, então?
– Peito de frango assado, puré de batata e cenouras glaceadas – respondo, apesar de a ementa de hoje ter sido cuidadosamente programada pelo próprio Douglas.
Douglas fica um momento a refletir.
– Não ponha batatas no prato da minha mulher. Fazem-lhe mal ao estômago.
– Está bem...
– E só meia dose de frango para ela – acrescenta. – Não tem estado bem e duvido que consiga comer muito.
Enquanto escorro as batatas que a Wendy não poderá partilhar, compreendo finalmente o porquê de ela ser tão dolorosamente magra. É o Douglas quem lhe leva a comida todas as noites. Controla cada porção que lhe entra na boca.
Além de tudo o resto, fá-la sistematicamente passar
fome. Ainda uma outra forma de a controlar, de a manter débil e de lhe matar o espírito.
A Wendy tem razão. Isto tem de acabar.
Pelo lado positivo, agora é seguro cuspir no puré de batata.
36
Quando vou para a cama, ainda estou a pensar naquela arma escondida dentro do dicionário.
A expressão nos olhos da Wendy ao mostrar-ma confundível. Está a falar a sério. Chegou a um ponto de desespero em que pensa para consigo: ou ele ou eu. E esse é um mau lugar para se estar. É então que se começam a cometer erros estúpidos.
Mais cedo do que tarde, terei de ligar ao Enzo. Ajudá-la-á melhor do que eu. Mas não posso ligar-lhe agora. É quase meia-noite e, se me vir a ligar-lhe a esta hora, pensará de certeza que é um convite sexual. Não quero que fique com a ideia errada.
Ainda que uma pequena parte de mim não tenha parado de pensar nele desde aquela noite em que fui a Albany.
Continuo zangada por ter desaparecido como desapareceu, mas não posso negar a pura alegria que senti quando saiu daquele carro. Ocorre-me agora que nunca me senti assim pelo Brock, e não estou certa de que alguma vez venha a sentir.
Mas isso não é justo para o Brock. O meu namorado tem tantas qualidades. Acima de tudo, é um homem confiável que jamais me abandonaria em tempos de necessidade. Disso tenho a certeza.
Por outro lado, não lhe pude contar nada do que se está a passar com a Wendy. A sua reação teria sido ligar imediatamente à polícia e não se envolver. O típico pensamento de advogado.
Como se lhe estivessem a arder as orelhas no bairro do lado, uma mensagem de texto do Brock aparece no meu telemóvel: