Precisava preencher meus espaços em branco, e achei que a simples visão do seu rosto fosse o suficiente. Mas não foi; precisava também entender que... tinha sido amada.
— Você é amada.
Dei uma longa pausa: tinha finalmente colocado em palavras o que gostaria de dizer desde que a deixei ir embora.
Para evitar que ficasse comovida, continuei:
— Gostaria de lhe pedir uma coisa.
— O que quiser.
— Quero pedir perdão.
Ela mordeu os lábios.
— Sempre fui uma pessoa muito agitada. Trabalho muito, cuido demais do meu filho, danço como uma louca, aprendi caligrafia, freqüento cursos de aperfeiçoamento de vendas, leio um livro atrás do outro. Tudo para evitar aqueles momentos em que nada acontece, porque estes espaços em branco me traziam uma sensação de vazio absoluto, onde não existe nem uma simples migalha de amor. Meus pais sempre fizeram tudo por mim, e penso que não canso de os decepcionar.
“Mas aqui, enquanto ficamos juntas, nos momentos em que celebrei a natureza e a Grande Mãe com você, entendi que os tais espaços vazios começavam a ser preenchidos. Transformaram-se em pausas — o momento em que o homem levanta a mão do tambor, antes de tocá-lo de novo com força. Acho que posso ir; não digo que irei em paz, porque minha vida precisa de um ritmo com o qual 253
estou acostumada. Mas tampouco irei com amargura. Todos os ciganos acreditam na Grande Mãe?
— Se você perguntar, nenhum dirá que sim. Adotaram as crenças e os costumes dos lugares onde foram se instalando.
Entretanto, a única coisa que nos une na religião é adorar Santa Sarah, e peregrinar pelo menos uma vez na vida até onde está seu túmulo, em Saintes-Maries-de-la-Mer. Algumas tribos a chamam de Kali Sarah, a Sarah Negra. Ou a Virgem dos Ciganos, como é conhecida em Lourdes.
— Preciso ir — disse Athena depois de um tempo. — O
amigo que você conheceu outro dia irá me acompanhar.
— Parece um bom homem.
— Você está falando como mãe.
— Sou sua mãe.
— Sou sua filha.
Ela me abraçou, desta vez com lágrimas nos olhos. Eu afaguei os seus cabelos, enquanto a mantinha entre meus braços como sempre sonhara, desde que um dia o destino — ou o meu medo —
nos separou. Pedi que se cuidasse, e ela respondeu que tinha aprendido muito.
— Irá aprender mais ainda porque, embora todos nós estejamos hoje presos a casas, cidades, empregos, ainda corre em seu sangue o tempo das caravanas, as viagens, e os ensinamentos que a Grande Mãe colocava em nosso caminho, de modo que pudéssemos sobreviver. Aprenda, mas aprenda sempre com gente ao seu lado. Não fique sozinha nesta busca: se estiver dando um passo errado, não terá ninguém que a ajude a corrigi-lo.
Ela continuava chorando, abraçada a mim, quase me pedindo para ficar. Implorei ao meu protetor que não me deixasse verter nenhuma lágrima, porque eu queria o melhor para Athena, e seu destino era seguir adiante. Aqui na Transilvânia, além do meu amor, não encontraria mais nada. E embora eu ache que o amor é suficiente para justificar toda uma existência, tinha absoluta 254
certeza que não podia pedir que sacrificasse o seu futuro para ficar ao meu lado.
Athena me deu um beijo na testa e foi embora sem dizer adeus, talvez pensando que um dia iria voltar. Todos os natais me enviava dinheiro suficiente para passar o ano inteiro sem precisar costurar; jamais fui ao banco receber seus cheques, embora todos da tribo achassem que eu estava agindo como uma mulher ignorante.
Há seis meses, parou de enviar. Deve ter compreendido que preciso da costura para preencher aquilo que ela chamava de
“espaços brancos”.
Por mais que gostaria de vê-la uma vez mais, sei que não voltará nunca; neste momento deve ser uma grande executiva, casada com o homem que ama, devo ter muitos netos, o meu sangue continuará nesta terra, e os meus erros serão perdoados.
Samira R. Khalil, dona de casa
Assim que Sherine entrou em casa dando gritos de alegria, agarrando e apertando um assustado Viorel, entendi que tudo havia corrido melhor do que eu imaginava. Senti que Deus havia escutado minhas preces, e ela agora já não tinha nada mais a descobrir sobre si mesma, podia finalmente adaptar-se a uma vida normal, criar seu filho, casar-se de novo, e deixar de lado toda aquela ansiedade que a deixava eufórica e deprimida ao mesmo tempo.
— Eu te amo,mamãe.
Foi minha vez de agarrá-la e apertá-la em meus braços.
Durante algumas daquelas noites em que esteve fora, confesso que fiquei aterrorizada com a idéia de que enviasse alguém para buscar Viorel, e nunca mais voltassem.
Depois de comer, tomar banho, contar sobre o encontro com a mãe de sangue, descrever as paisagens da Transilvânia ( eu 255
não me lembrava direito, já que estava apenas em busca de um orfanato), eu perguntei quando voltava para Dubai
— Na semana que vem. Antes preciso ir à Escócia encontrar uma pessoa.
Um homem!
— Uma mulher — ela continuou, possivelmente notando meu sorriso de cumplicidade. — Sinto que tenho uma missão.