Estes dois, em um ato de amor, fizeram uma terceira pessoa, e a partir daí tudo se multiplicou por milhares, milhões. Você perguntou sobre a igreja que acabamos de ver: não sei sua origem, e não me interessa, meu templo é o jardim, o céu, a água do lago e do riacho que o alimenta. Meu povo são pessoas que dividem a mesma idéia comigo, e não aquelas a quem estou ligada por laços de sangue. Meu ritual é estar com esta gente, celebrando tudo que está à minha volta. Quando você pretende voltar para casa?
— Talvez amanhã. Desde que não esteja incomodando.
Outra ferida no meu coração, mas eu não podia dizer nada.
— Fique o tempo que quiser. Perguntei apenas porque gostaria de celebrar com os outros a sua chegada. Posso fazer isso hoje à noite, se concordar.
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Ela não diz nada, e entendo que é um “sim”. Voltamos para casa, eu a alimento de novo, ela explica que precisa ir até o hotel em Sibiu pegar algumas roupas, quando volta já organizei tudo. Vamos para uma colina ao sul da cidade, sentamos em volta da fogueira que acaba de ser acesa, tocamos instrumentos, cantamos, bailamos, contamos histórias. Ela assiste a tudo sem participar de nada, embora o Rom Baro tenha dito que era uma excelente dançarina. Pela primeira vez em todos estes anos eu estou alegre, porque pude preparar um ritual para minha filha e celebrar com ela o milagre de ambas estarmos vivas, com saúde, mergulhadas no amor da Grande Mãe.
No final, diz que aquela noite vai dormir no hotel.
Pergunto se estamos nos despedindo, ela diz que não. Voltará amanhã.
Durante toda uma semana, eu e minha filha dividimos a adoração do Universo. Em uma destas noites, ela trouxe um amigo, mas fazendo questão de explicar que não era o seu amado, nem o pai de sua filha. O homem, que devia ter dez anos a mais que ela, perguntou a quem estávamos celebrando em nossos rituais.
Expliquei que adorar alguém significava — segundo meu protetor —
colocar esta pessoa fora de nosso mundo. Não estamos adorando nada, apenas comungando com a Criação.
— Mas vocês rezam?
— Pessoalmente, eu rezo para Santa Sarah. Mas aqui nós somos parte de tudo, celebramos em vez de rezar.
Achei que Athena tinha ficado orgulhosa com minha resposta. Na verdade eu estava apenas repetindo as palavras de meu protetor.
— E por que fazem isso em conjunto, já que podemos celebrar sozinhos nosso contato com o Universo?
— Porque os outros são eu. E eu sou os outros.
Neste momento, Athena me olhou, e eu senti que foi minha vez de cortar o seu coração.
— Estou indo embora amanhã — ela disse.
— Antes de ir, venha despedir-se de sua mãe.
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Foi a primeira vez, ao longo de todos estes dias, que eu usei este termo. Minha voz não tremeu, meu olhar manteve-se firme, e eu sabia que, apesar de tudo, ali estava o sangue do meu sangue, o fruto do meu ventre. Naquele momento eu me comportava como uma menina que acaba de compreender que o mundo não está cheio de fantasmas e maldições, como os adultos nos ensinaram; está repleto de amor, independente de como ele se manifeste. Um amor que perdoa seus erros, e que redime seus pecados.
Ela me abraçou por um longo tempo. Em seguida, ajeitou o véu com que cubro meus cabelos — embora não tivesse um marido, a tradição cigana dizia que eu devia usá-lo, já que não era mais virgem. O que o amanhã reservava para mim, além da partida de um ser que sempre amei e temi à distância? Eu era todos, e todos eram eu e minha solidão.
No dia seguinte Athena apareceu com um ramo de flores, arrumou meu quarto, disse que eu devia usar óculos porque meus olhos estavam ficando desgastados com a costura. Perguntou se os amigos com quem celebrava não terminavam tendo problemas com a tribo, eu disse que não, que meu protetor fora um homem respeitado, aprendera o que muitos de nós não sabíamos, tinha discípulos no mundo inteiro. Expliquei que morrera pouco antes dela chegar.
— Certo dia, um gato aproximou-se e tocou-o com seu corpo. Para nós, isso significava morte e todos ficamos preocupados; mas existe um ritual para cortar tal malefício.
“Entretanto, meu protetor disse que já era tempo de partir, precisava viajar pelos mundos que ele sabia existirem, voltar a renascer como criança, e antes repousar um pouco no colo da Mãe. Seu funeral foi simples, em uma floresta aqui perto, mas veio gente do mundo inteiro assistir.”
— Entre estas pessoas, uma mulher de cabelos pretos, próxima dos 35 anos?
— Não me lembro exatamente, mas é possível que sim.
Por que quer saber?
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— Encontrei alguém em um hotel de Bucareste, que disse que viera para o funeral de um amigo. Acho que mencionou algo como “seu mestre”.
Pediu-me que contasse mais sobre os ciganos, mas não havia muito que não soubesse. Principalmente porque, além dos hábitos e tradições, quase não conhecemos nossa história. Sugeri que um dia fosse até a França, e levasse em meu nome uma saia para a imagem de Sarah no vilarejo francês de Saintes-Maries-de-la-Mer.
— Vim até aqui porque faltava algo na minha vida.