Sentei-me no chão, agarrei-me em uma árvore sem conseguir parar de chorar. Mas, quando as minhas lágrimas e o sangue dos meus ferimentos tocaram seu caule, uma estranha calma tomou conta de mim. Parecia que eu escutava uma voz dizendo que não me preocupasse, que o meu sangue e minhas lágrimas haviam purificado o caminho da menina e diminuído o meu sofrimento.
Desde então, sempre que entro em desespero, me lembro desta voz, e me tranqüilizo.
Por isso, não foi surpresa vê-la chegar com o Rom Baro de nossa tribo — que pediu café, bebida, sorriu com ironia, e logo foi embora. A voz me dissera que ela voltaria, e agora está aqui, na minha frente. Bonita, parecida com o pai, não sei o que sente por mim — talvez ódio por tê-la abandonado um dia. Não preciso explicar por que fiz isso; ninguém no mundo poderia mesmo compreender.
Ficamos uma eternidade sem dizer nada uma para a outra, apenas olhando — sem sorrir, sem chorar, sem nada. Um surto de amor sai do fundo da minha alma, não sei se está interessada no que sinto.
— Você está com fome? Quer comer algo?
O instinto. Sempre o instinto em primeiro lugar. Ela faz que “sim” com a cabeça. Entramos no pequeno quarto onde vivo
— e que serve ao mesmo tempo de sala, dormitório, cozinha, e ateliê de costura. Ela olha para aquilo tudo, está espantada, mas finjo que não notei: vou até o fogão, volto com dois pratos da 245
espessa sopa de vegetais e gordura animal. Preparo um café forte, e, quando vou colocar açúcar, escuto sua primeira frase:
— Puro, por favor. Não sabia que falava inglês.
Ia dizer “foi seu pai”, mas me controlei. Comemos em silêncio, e, à medida que o tempo vai passando, tudo começa a me parecer familiar, estou ali com minha filha, ela caminhou o mundo e agora está de volta, conheceu outros caminhos e retorna para casa. Sei que é uma ilusão, mas a vida me deu tantos momentos de dura realidade, que não custa sonhar um pouco.
— Quem é esta santa? — aponta para um quadro na parede.
— Santa Sarah, a padroeira dos ciganos. Sempre quis visitar sua igreja, na França, mas não podemos sair daqui. Não conseguiria passaporte, permissão, e...
Ia dizer: “mesmo que conseguisse, não teria dinheiro”, mas interrompi a frase. Ela podia achar que estava lhe pedindo algo.
-... e estou muito ocupada com meu trabalho.
O silêncio retorna. Ela termina a sopa, acende um cigarro, seu olhar não demonstra nada, nenhum sentimento.
— Você achou que tornaria a me ver de novo?
Respondo que sim. E soube ontem, pela mulher do Rom Baro, que ela estava em seu restaurante.
— Uma tempestade se aproxima. Você não quer dormir um pouco?
— Não escuto nenhum ruído. O vento não está soprando nem mais forte, nem mais fraco do que antes. Prefiro conversar.
— Acredite em mim. Tenho o tempo que quiser, tenho a vida que me resta para estar ao seu lado.
— Não diga isso agora.
— ... mas você está cansada — continuo, fingindo que não ouvi seu comentário. Vejo a tempestade que se aproxima. Como toda e qualquer tempestade, ela traz destruição; mas ao mesmo tempo molha os campos, e a sabedoria do céu desce junto com a sua 246
chuva. Como toda e qualquer tempestade, ela deve passar. Quanto mais violenta, mais rápida.
Graças a Deus, aprendi a enfrentar tempestades.
E, como se as Santas Marias do Mar me escutassem, começam a cair as primeiras gotas no teto de zinco. A moça termina seu cigarro, eu a pego pelas mãos, conduzo até minha cama. Ela deita-se e fecha os olhos.
Não sei quanto tempo dormiu; eu a contemplava sem pensar em nada, e a voz que um dia havia escutado na floresta me dizia que estava tudo bem, que não devia me preocupar, que as mudanças que o destino provoca nas pessoas são favoráveis se soubermos decifrar o que elas contêm. Não sei quem a havia recolhido do orfanato, a educado, a transformado na mulher independente que parecia ser. Fiz uma prece por essa família que havia permitido a minha filha sobreviver e melhorar de vida. No meio da prece, senti ciúme, desespero, arrependimento, e parei de conversar com Santa Sarah; será que tinha sido realmente importante trazê-la de volta? Ali estava tudo que eu perdi e jamais poderia recuperar.
Mas ali também estava a manifestação física de meu amor. Eu não sabia de nada, e ao mesmo tempo tudo me era revelado, voltavam as cenas em que eu pensei em suicídio, considerei o aborto, imaginei-me deixando aquele canto do mundo e seguindo a pé até onde minhas forças agüentassem, o momento em que vi meu sangue e minhas lágrimas na árvore, a conversa com a natureza que se intensificou a partir deste momento, e jamais me deixou desde então — embora pouca gente da minha tribo soubesse disso. O meu protetor, que me encontrou vagando na floresta, era capaz de entender tudo isso, mas ele acabara de morrer.
“A luz é instável, apaga-se com o vento, acende-se com o raio, nunca está ali, brilhando como o sol — mas vale a pena lutar por ela”, dizia ele.