Apanho o comboio de regresso ao meu apartamento no Bronx. Depois de tudo o que aconteceu hoje, mal consigo pôr um pé à frente do outro. Tenho de passar uns bons cinco minutos a vasculhar a minha bolsa à procura das chaves, até ter a certeza de que as perdi. Quando estou prestes a desistir, encontro-as enfiadas no fundo da bolsa.
– Millie!
Mal entro no edifício, a minha senhoria, a Sra. Randall, sai apressadamente do seu apartamento no primeiro andar, envergando um dos seus vestidos demasiado grandes que não lhe apertam a cintura. Traz o rosto enrugado todo franzido e projeta o lábio inferior.
– A polícia esteve aqui! – exclama. – Obrigaram-me a abrir o teu apartamento e fizeram buscas! Tinham um papel a dizer que eu tinha de os deixar entrar!
– Eu sei – gemo. – Peço desculpa por isso.
A Sra. Randall semicerra os olhos para me fitar.
– Andas a esconder droga lá em cima?
– Não! De todo! – Só assassinei alguém, mais nada. Caramba.
– Não quero mais sarilhos no meu prédio – diz. – E tu só trazes sarilhos. Duas vezes que a polícia veio cá por tua causa! Quero-te fora. Tens uma semana.
– Uma semana! – exclamo. – Mas, senhora Randall...
– Uma semana e mudo as fechaduras – silva. – Não te quero por perto, seja o que for que fazes naquele teu apartamento.
Sinto um aperto no coração. Como raios vou eu encontrar outro apartamento com tudo o que me está a acontecer? Talvez seja melhor se for presa. Ao menos então terei um sítio onde ficar. E comida gratuita.
Subo as escadas até ao meu apartamento. Espero encontrá-lo esquadrinhado e não fico desiludida. Os agentes que revistaram o local não fizeram qualquer esforço em voltar a pôr tudo nos seus devidos lugares. Levarei o resto da noite a arrumar tudo.
Deixo-me cair no sofá, exausta. Não posso lidar com esta confusão esta noite. Talvez amanhã. Talvez nunca. De que adianta, se vou para a prisão, seja como for?
Ao invés, agarro no controlo remoto e ligo a minha televisão manhosa. Suponho que é isto que vou fazer na minha última noite de liberdade.
Infelizmente, a televisão está sintonizada num canal noticioso. A história do homicídio de Douglas Garrick está em todas as notícias neste momento. A apresentadora no ecrã, com o seu brilhante cabelo louro, informa que a polícia está a falar com uma «pessoa de interesse».
Ei, apareci nas notícias. Sou uma «pessoa de interesse».
O programa passa então para um vídeo da Wendy. Está a falar com um jornalista e tem os olhos raiados de sangue e inchados.
Os hematomas no seu rosto parecem ter desaparecido por completo, o que presumo se deva à maquilhagem. Vira-se para se dirigir à câmara.
– O meu marido Douglas era um homem incrível – afirma, numa voz surpreendentemente forte que não parece de todo ela. – Era generoso, brilhante e planeávamos constituir família em breve. Não merecia ter a sua vida interrompida desta forma. Não é justo que... – Para de falar, embargada pela emoção. – Eu... peço desculpa...
O que foi aquilo?
Como pode a Wendy falar assim de Douglas depois do que lhe fez? Entendo não querer falar mal dos mortos, mas está a dar a ideia de que era um santo. O homem estava a segundos de a estrangular até à morte quando eu lhe acabei com a vida. Por que não diz ela isso ao jornalista?
O vídeo passa para a apresentadora loura. Os seus límpidos olhos azuis fixam-se no ecrã.
– Se só agora se juntou a nós, a nossa principal notícia é o brutal homicídio de Douglas Garrick, o multimilionário diretor– –executivo da Coinstock. Foi encontrado morto ontem à noite no seu apartamento no Upper West Side, com um tiro fatal no peito.
O ecrã passa para uma fotografia de um homem na casa dos quarenta, com a legenda «Douglas Garrick, diretor-executivo da Coinstock». Fico a olhar fixamente para lá, para o cabelo escuro do homem e os seus suaves olhos castanhos, o duplo queixo e as rugas em torno dos seus olhos ao sorrir para a câmara. Enquanto olho para a foto de Douglas Garrick, percebo uma coisa.
Nunca vi este homem na vida.
O homem cuja fotografia aparece no ecrã é-me completamente desconhecido. Parece-se um pouco com o homem com quem interagi no apartamento e, ao longe, poderia não se notar a diferença. Mas não é ele. Não é decididamente ele. Este homem é alguém completamente diferente.
Portanto, se o homem no ecrã é o Douglas Garrick...
Quem diabo matei ontem à noite?
SEGUNDA PARTE
46
WENDY
Devem achar que sou uma pessoa horrível.
Ajudaria se dissesse que, apesar de nunca me ter agredido, o Douglas era um péssimo marido? Humilhou-me e fez-me a vida miserável. E eu ter-me-ia contentado com o divórcio.
Não tinha de acabar em homicídio. Foi inteiramente culpa dele.
E a Millie? Bem, é uma baixa a lamentar. Mas não é tão doce como poderiam julgar. Se passar a vida atrás das grades, é para o bem maior.
Mas, mesmo depois de ouvirem o meu lado da história, talvez continuem a achar que sou uma pessoa horrível. Talvez pensem que o Douglas não merecia morrer. Talvez julguem que eu é que mereço ir para a prisão para o resto da vida.