Читаем Livro do Desassossego полностью

Vou num carro elétrico, e estou reparando lentamente, conforme é meu costume, em todos os pormenores das pessoas que vão adiante de mim. Para mim os pormenores são coisas, vozes, letras’. Neste vestido da rapariga que vai na minha frente decomponho o vestido em o estofo de que se compõe, o trabalho com que o fizeram — pois que o vejo vestido e não estofo — e o bordado leve que orla a parte que contorna o pescoço separa-se-me em retrós de seda, com que se o bordou, e o trabalho que houve de o bordar. E imediatamente, como num livro primário de economia política, desdobram-se diante de mim as fábricas e os trabalhos – a fábrica onde se fez o tecido; a fábrica onde se fez o retrós, de um tom mais escuro, com que se orla de coisinhas retorcidas o seu lugar junto do pescoço; e vejo as secções das fábricas, as máquinas, os operários, as costureiras, meus olhos virados para dentro penetram nos escritórios, vejo os gerentes procurar estar sossegados, sigo, nos livros, a contabilidade de tudo; mas não é só isto: vejo, para além, as vidas domésticas dos que vivem a sua vida social nessas fábricas e nesses escritórios... Todo o mundo se me desenrola aos olhos só porque tenho diante de mim, abaixo de um pescoço moreno, que de outro lado tem não sei que cara, um orlar irregular regular verde escuro sobre um verde claro de vestido.

Toda a vida social jaz aos meus olhos.

Para além disto pressinto os amores, as secrecias a alma, de todos quantos trabalharam para que esta mulher que está diante de mim no elétrico use, em torno do seu pescoço mortal, a banalidade sinuosa de um retrós de seda verde escura fazenda verde menos escura.

Entonteço. Os bancos do elétrico, de um entretecido de palha forte e pequena, levam-me a regiões distantes, multiplicam-se-me em indústrias, operários, casas de operários, vidas, realidades, tudo.

Saio do carro exausto e sonâmbulo. Vivi a vida inteira.

299.

Cada vez que viajo, viajo imenso’. O cansaço que trago comigo de uma viagem de comboio até Cascais é como se fosse o de ter, nesse pouco tempo, percorrido as paisagens de campo e cidade de quatro ou cinco países.

Cada casa porque passo, cada chalé, cada casita isolada caiada de branco e de silêncio — em cada uma delas num momento me concebo vivendo, primeiro feliz, depois tediento, cansado depois; e sinto que tendo-a abandonado, trago comigo uma saudade enorme do tempo em que lá vivi. De modo que todas as minhas viagens são uma colheita dolorosa e feliz de grandes alegrias, de tédios enormes, de inúmeras falsas saudades.

Depois, ao passar diante de casas, de vilas, de chalés, vou vivendo em mim todas as vidas das criaturas que ali estão. Vivo todas aquelas vidas domésticas ao mesmo tempo. Sou o pai, a mãe, os filhos, os primos, a criada e o primo da criada, ao mesmo tempo e tudo junto, pela arte especial que tenho de sentir ao mesmo tempo várias sensações diversas, de viver ao mesmo tempo — e ao mesmo tempo por fora, vendo-as, e por dentro sentindo-as — as vidas de várias criaturas.

Criei em mim várias personalidades. Crio personalidades constantemente. Cada sonho meu é imediatamente, logo ao aparecer sonhado, encarnado numa outra pessoa, que passa a sonhá-lo, e eu não.

Para criar, destruí-me; tanto me exteriorizei dentro de mim, que dentro de mim não existo senão exteriormente. Sou a cena viva onde passam vários atores representando várias peças.

300.

Sonho triangular

No meu sonho no convés estremeci — é que pela minha alma de Príncipe Longínquo passou um arrepio de presságio.

Um silêncio ruidoso a ameaças invadia como uma brisa lívida a atmosfera visível da saleta.

Tudo isto é haver um brilho excessivo a inquietá-lo no luar sobre o oceano que não embala já mas estremece; tornou-se evidente — e eu ainda os não ouvi — que há ciprestes ao pé do palácio do Príncipe.

O gládio do primeiro relâmpago volteou vagamente no além... E cor de relâmpago o luar sobre o mar alto e tudo isto é ser ruínas já e passado afastado o meu palácio do príncipe que nunca fui...

Com um ruído soturno e aproximando-se o navio entre as águas, a saleta escurece lividamente, e não morreu, não está preso algures, não sei o que é feito dele — do príncipe — que gélida coisa desconhecida lhe é o destino agora?...

301.

A única maneira de teres sensações novas é construíres-te uma alma nova. Baldado esforço o teu se queres sentir outras coisas sem sentires de outra maneira, e sentires de outra maneira sem mudares de alma. Porque as coisas são como nós as sentimos — há quanto tempo sabes tu isto sem o saberes’? — e o único modo de haver coisas novas, de sentir coisas novas é haver novidade no senti-las.

Muda de alma. Como? Descobre-o tu.

Desde que nascemos até que morremos mudamos de alma lentamente, como do corpo. Arranja meio de tornar rápida essa mudança, como com certas doenças, ou certas convalescenças, rapidamente o corpo se nos muda.

Não descer nunca a fazer conferências, para que não se julgue que temos opiniões, ou que descemos ao público para falar com ele. Se ele quiser, que nos leia.

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