Читаем Livro do Desassossego полностью

Se houvesse na arte o mister de aperfeiçoador, eu teria na vida (da minha arte) uma função...

Ter a obra feita por outrem, e trabalhar só em aperfeiçoá-la... Assim, talvez, foi feita a Ilíada...

Só o não ter o esforço da criação primitiva!

Como invejo os que escrevem romances, que os começam, e os fazem, e os acabam! Sei imaginá-los, capítulo a capítulo, por vezes com as frases do diálogo e as que estão entre o diálogo, mas não saberia dizer no papel esses sonhos de escrever,

292.

Tudo quanto é ação, seja a guerra ou o raciocínio, é falso; e tudo quanto é abdicação é falso também. Pudesse eu saber como não agir nem abdicar de agir! Seria essa a coroa-de-sonho da minha glória, o ceptro-de-silêncio da minha grandeza.

Eu nem sofro. O meu desdém por tudo é tão grande que me desdenho a mim próprio; que, como desprezo os sofrimentos alheios, desprezo também os meus, e assim esmago sob o meu desdém o meu próprio sofrimento.

Ah, mas assim sofro mais... Porque dar valor ao próprio sofrimento põe-lhe o ouro de um sol do orgulho. Sofrer muito pode dar a ilusão de ser o Eleito da Dor. Assim.

293.

Intervalo doloroso

Como alguém cujos olhos, erguidos de um longo, de um livro, recebam a violência para eles de um mero claro sol natural, se ergo às vezes de mim os meus olhos de ver-me dói-me e arde-me fitar a nitidez e independência-de-mim da vida claramente externa, da existência dos outros, da posição e correlação dos movimentos no espaço. Tropeço nos sentimentos reais dos outros, o antagonismo dos seus psiquismos com o meu entala-me e entaramela-me os passos, escorrego e destrambelho-me por entre e por sobre o som das suas palavras estranhas a ser ouvido em mim, o apoio forte e certo dos seus passos no chão atual, os seus gestos que existem verdadeiramente, os seus vários  e complexos modos de serem outras pessoas que não variantes da minha.

Encontro-me então, nestas almas em que me precipito às vezes, desamparado e oco, parecendo que morri e vivo, pálida sombra dolorida, que a primeira brisa deitará por terra e o primeiro contacto desfará em pó.

Pergunto então em mim próprio se valerá a pena todo o esforço que pus em me isolar e elevar, se o lento calvário que de mim fiz para a minha Glória Crucificada valerá religiosamente a pena? E, ainda que saiba que valeu, pesa-me nesse momento o sentimento de que não valeu, de que não valerá nunca.

294.

O dinheiro, as crianças (os doidos)

Nunca se deve invejar a riqueza, senão platonicamente; a riqueza é liberdade.

295.

O dinheiro é belo, porque é uma libertação.

Querer ir morrer a Pequim e não poder é das coisas que pesam sobre mim como a ideia de um cataclismo vindouro’.

Os compradores de coisas inúteis sempre são mais sábios do que se julgam — compram pequenos sonhos. São crianças no adquirir. Todos os pequenos objetos inúteis cujo acenar ao saberem que têm dinheiro os faz comprá-los, possuem-nos na atitude feliz de uma criança que apanha conchinhas na praia — imagem que mais do que nenhuma dá toda a felicidade possível. Apanha conchas na praia! Nunca há duas iguais para a criança. Adormece com as duas mais bonitas na mão, e quando lhas perdem ou tiram — o crime! Roubar-lhe bocados exteriores da alma! Arrancar-lhe pedaços de sonho! — chora como um Deus a quem roubassem um universo recém-criado.

296.

A mania do absurdo e do paradoxo é a alegria animal  dos tristes. Como o homem normal diz disparates por vitalidade, e por sangue dá palmadas nas costas de outros, os incapazes de entusiasmo e de alegria dão cambalhotas na inteligência e, ao seu modo, fazem os gestos  da vida.

297.

A reductio ad absurdum é uma das minhas bebidas prediletas.

298.

Tudo é absurdo. Este empenha a vida em ganhar dinheiro que guarda, e nem tem filhos a quem o deixe nem esperança que um céu lhe reserve uma transcendência desse dinheiro. Aquele empenha o esforço em ganhar fama, para depois de morto, e não crê naquela sobrevivência que lhe dê o conhecimento da fama. Esse outro gasta-se na procura de coisas de que realmente não gosta. Mais adiante, há um que lê para saber, inutilmente. Outro goza para viver, inutilmente.

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