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Amamos a sua aproximação do perfeito, porém a amamos porque é só aproximação.

288.

Que tragédia não acreditar na perfectibilidade humana!...

—      E que tragédia acreditar nela!

289.

Se eu tivesse escrito o Rei Lear, levaria com remorsos toda a minha vida de depois. Porque essa obra é tão grande, que enormes avultam os seus defeitos, os seus monstruosos defeitos, as coisas até mínimas que estão entre certas cenas e a perfeição possível delas. Não é o sol com manchas; é uma estátua grega partida. Tudo quanto tem sido feito está cheio de erros, de faltas de perspetiva, de ignorâncias, de traços de mau gosto, de fraquezas e desatenções. Escrever uma obra de arte com o preciso tamanho para ser grande, e a precisa perfeição para ser sublime, ninguém tem o divino de o fazer, a sorte de o ter feito. O que não pode ir de um jacto sofre do acidentado do nosso espírito.

Se penso nisto entra com a minha imaginação um desconsolo enorme, uma dolorosa certeza de nunca poder fazer nada de bom e útil para a Beleza. Não há método de obter a Perfeição exceto ser Deus. O nosso maior esforço dura tempo; o tempo que dura atravessa diversos estados da nossa alma, e cada estado de alma, como não é outro, qualquer, perturba com a sua personalidade a individualidade da obra. Só temos a certeza de escrever mal, quando escrevemos; a única obra grande e perfeita é aquela que nunca se sonhe realizar.

Escuta-me ainda, e compadece-te. Ouve tudo isto e diz-me depois se o sonho não vale mais que a vida. O trabalho nunca dá resultado. O esforço nunca chega a parte nenhuma. Só a abstenção é nobre e alta, porque ela é a que reconhece que a realização é sempre inferior, e que a obra feita é sempre a sombra grotesca da obra sonhada.

Poder escrever, em palavras sobre papel, que se possam depois ler alto e ouvir, os diálogos das personagens dos meus dramas imaginados! Esses dramas têm uma ação perfeita e sem quebra, diálogos sem falha, mas nem a ação se esboça em mim em comprimento, para que eu a possa projetar em realização; nem são propriamente palavras o que forma a substância desses diálogos íntimos, para que, ouvidas com atenção, eu as possa traduzir para escritas.

Amo alguns poetas líricos porque não foram poetas épicos ou dramáticos, porque tiveram a justa intuição de nunca querer mais realização do que a de um momento de sentimento ou de sonho. O que se pode escrever inconscientemente — tanto mede o possível perfeito. Nenhum drama de Shakespeare satisfaz como uma lírica de Heine. É perfeita a lírica de Heine, e todo o drama — de um Shakespeare ou de outro, é imperfeito sempre. Poder construir, erguer um Todo, compor uma coisa que seja como um corpo humano, com perfeita correspondência nas suas partes, e com uma vida, uma vida de unidade e congruência, unificando a dispersão de feitios das duas partes!

Tu, que me ouves e mal me escutas, não sabes o que é esta tragédia! Perder pai e mãe, não atingir a glória nem a felicidade, não ter um amigo nem um amor — tudo isso se pode suportar; o que se não pode suportar é sonhar uma coisa bela que não seja possível conseguir em acto ou palavras. A consciência do trabalho perfeito, a fartura da obra obtida — suave é o sono sob essa sombra de árvore, no verão calmo.

290.

As frases que nunca escreverei, as paisagens que não poderei nunca descrever, com que clareza as dito à minha inércia e as descrevo na minha meditação, quando, recostado, não pertenço, senão longinquamente, à vida. Talho frases inteiras, perfeitas palavra a palavra, contexturas de dramas narram-se-me construídas no espírito, sinto o movimento métrico e verbal de grandes poemas em todas as palavras  e um grande entusiasmo, como um escravo que não vejo, segue-me na penumbra. Mas se der um passo, da cadeira, onde jazo estas sensações quase cumpridas, para a mesa onde quereria escrevê-las, as palavras fogem, os dramas morrem, do nexo vital que uniu o murmúrio rítmico não fica mais que uma saudade longínqua, um resto de sol sobre montes afastados, um vento que ergue as folhas ao pé do limiar deserto, um parentesco nunca revelado, a orgia  dos outros, a mulher, que a nossa intuição diz que olharia para trás, e nunca chega a existir.

Projetos, tenho-os tido todos. A Ilíada que compus teve uma lógica de estrutura, uma concatenação orgânica de epodos que Homero não podia conseguir. A perfeição estudada dos meus versos por completar em palavras deixa pobre a precisão de Virgílio e frouxa a força de Milton. As sátiras alegóricas que fiz excederam todas a Swift na precisão simbólica dos particulares exatamente ligados. Quantos Verlaines fui!

E sempre que me levantei da cadeira onde, na verdade, estas coisas não foram absolutamente sonhadas, tive a dupla tragédia de as saber nulas e de saber que não foram todas sonho, que alguma coisa ficou delas no limiar abstrato em eu pensar e elas serem.

Fui génio mais que nos sonhos e menos que na vida. A minha tragédia é esta. Fui o corredor que caiu quase na meta, sendo até aí o primeiro.

291.

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