Na cadeira, aonde me recosto, esqueço a vida que me oprime. Não me dói senão ter-me doído.
284.
Não toquemos na vida nem com as pontas dos dedos.
Não amemos nem com o pensamento.
Que nenhum beijo de mulher, nem mesmo em sonhos, seja uma sensação nossa.
Artífices da morbidez, requintemo-nos em ensinar a desiludir-se.
Curiosos da vida, espreitemos a todos os muros, antecansados de saber que não vamos ver nada de novo ou belo.
Tecelões da desesperança, teçamos mortalhas apenas — mortalhas brancas para os sonhos que nunca sonhámos, mortalhas negras para os dias que morremos, mortalhas cor de cinza para os gestos que apenas sonhámos, mortalhas imperiais- de- púrpura para as nossas sensações inúteis.
Pelos montados e pelos vales e pelas margens dos pântanos, caçam caçadores o lobo e a corça e o pato-bravo também. Odiemo-los, não porque caçam mas porque gozam (e nós não gozamos).
Seja a expressão do nosso rosto um sorriso pálido, como de alguém que vai chorar, um olhar vago, como de alguém que não quer ver, um desdém esparso por todas as feições, como o de alguém que despreza a vida e a vive apenas para ter que desprezar. E seja o nosso desprezo para os que trabalham e lutam e o nosso ódio para os que esperam e confiam.
285.
Estou quase convencido de que nunca estou desperto. Não sei se não sonho quando vivo, se não vivo quando sonho, ou se o sonho e a vida não são em mim coisas mistas, intersecionadas, de que o meu ser consciente se forme por interpenetração.
As vezes, em plena vida ativa, em que, evidentemente, estou tão claro de mim como todos os outros, vem até à minha suposição uma sensação estranha de dúvida; não sei se existo, sinto possível o ser um sonho de outrem, afigura-se-me, quase carnalmente, que poderei ser personagem de uma novela, movendo-me, nas ondas longas de um estilo, na verdade feita de uma grande narrativa.
Tenho reparado, muitas vezes, que certas personagens de romance tomam para nós um relevo que nunca poderiam alcançar os que são nossos conhecidos e amigos, os que falam connosco e nos ouvem na vida visível e real. E isto faz com que sonhe a pergunta se não será tudo neste total de mundo uma série entreinserta de sonhos e romances, como caixinhas dentro de caixinhas maiores — umas dentro de outras e estas em mais -, sendo tudo uma história com histórias, como as Mil e Uma Noites, decorrendo falsa na noite eterna.
Se penso, tudo me parece absurdo; se sinto, tudo me parece estranho; se quero, o que quer é qualquer coisa em mim. Sempre que em mim há ação, reconheço que não fui eu. Se sonho, parece que me escrevem. Se sinto, parece que me pintam. Se quero, parece que me põem num veículo, como a mercadoria que se envia, e que sigo com um movimento que julgo próprio para onde não quis que fosse senão depois de lá estar.
Que confusão é tudo! Como ver é melhor que pensar, e ler melhor que escrever! O que vejo, pode ser que me engane, porém não o julgo meu. O que leio, pode ser que me pese, mas não me perturba o tê-lo escrito. Como tudo dói se o pensamos como conscientes de pensar, como seres espirituais em quem se deu aquele segundo desdobramento da consciência pelo qual sabemos que sabemos! Embora o dia esteja lindíssimo, não posso deixar de pensar assim... Pensar ou sentir, ou que coisa terceira entre os cenários postos de parte? Tédios do crepúsculo e do desalinho, leques fechados, cansaço de ter tido que viver...
286.
Passávamos, jovens ainda, sob as árvores altas e o vago sussurro da floresta.
Nas clareiras, subitamente surgidas do acaso do caminho, o luar fazia-as lagos e as margens, emaranhadas de ramos, eram mais noite que a mesma noite. A brisa vaga dos grandes bosques respirava com som entre o arvoredo.
Falávamos das coisas impossíveis; e as nossas vozes eram parte da noite, do luar e da floresta. Ouvíamo-las como se fossem de outros.
Não era bem sem caminhos a floresta incerta. Havia atalhos que, sem querer, conhecíamos, e os nossos passos ondeavam neles entre os mosqueamentos das sombras e o palhetar vago do luar duro e frio. Falávamos das coisas impossíveis e toda a paisagem real era impossível também.
287.
Adoramos a perfeição, porque a não podemos ter; repugná-la-íamos, se a tivéssemos. O perfeito é o desumano, porque o humano é imperfeito.
O ódio surdo ao paraíso — o desejo como o da pobre infeliz de que houvesse campo no céu. Sim, não são os êxtases do abstrato, nem as maravilhas do absoluto que podem encantar uma alma que sente: são os lares e as encostas dos montes, as ilhas verdes nos mares azuis, os caminhos através de árvores e as largas horas de repouso nas quintas ancestrais, ainda que as nunca tenhamos. Se não houver terra no céu, mais vale não haver céu. Seja então tudo o nada, e acabe o romance que não tinha enredo.
Para poder obter a perfeição fora precisa uma frieza de fora do homem e não haveria então coração de homem com que amar a própria perfeição.
Pasmamos, adorando, da tensão para o perfeito dos grandes artistas.