Читаем Livro do Desassossego полностью

Outros, de melhor estirpe, abstivemo-nos da coisa pública, nada querendo e nada desejando, e tentando levar até ao calvário do esquecimento a cruz de simplesmente existirmos. Impossível esforço, em quem não tem, como o portador da Cruz, uma origem divina na consciência.

Outros entregaram-se, atarefados por fora da alma, ao culto da confusão e do ruído, julgando viver quando se ouviam, crendo amar quando chocavam contra as exterioridades do amor. Viver doía-nos, porque sabíamos que estávamos vivos; morrer não nos aterrava porque tínhamos perdido a noção normal da morte.

Mas outros, Raça do Fim, limite espiritual da Hora Morta, nem tiveram a coragem da negação e do asilo em si próprios. O que viveram foi em negação, em descontentamento e em desconsolo. Mas vivemo-lo de dentro, sem gestos, fechados sempre, pelo menos no género de vida, entre as quatro paredes do quarto e os quatro muros de não saber agir.

307.

Estética do desalento

Já que não podemos extrair beleza da vida, busquemos ao menos extrair beleza de não poder extrair beleza da vida. Façamos da nossa falência uma vitória, uma coisa positiva e erguida, com colunas, majestade e aquiescência espiritual.

Se a vida não nos deu mais do que uma cela de reclusão, façamos por ornamentá-la, ainda que mais não seja, com as sombras dos nossos sonhos, desenhos a cores mistas esculpindo o nosso esquecimento sobre a parada exterioridade dos muros.

Como todo o sonhador, senti sempre que o meu mister era criar. Como nunca soube fazer um esforço ou ativar uma intenção, criar coincidiu-me sempre com sonhar, querer ou desejar, e fazer gestos com sonhar os gestos que desejaria poder fazer.

308.

À minha incapacidade de viver crismei de génio, à minha cobardia cobri-a de lhe chamar requinte. Pus-me a mim, Deus dourado com ouro falso, num altar de papelão pintado para parecer mármore.

Mas a mim não enganei nem a consciência do meu enganar-me.

309.

O prazer de nos elogiarmos a nós próprios...

Paisagem de chuva

Cheira-me a frio, a mágoa, a serem impossíveis todos os caminhos, a ideia de todos os ideais.

As mulheres contemporâneas tais arranjos do seu porte e do seu vulto talham, que dão uma dolorosa impressão de efémeras e de insubstituíveis...

Os seus e adereços tais as pintam e cobram, que mais decorativas se tornam do que carnalmente viventes. Frisas, painéis, quadros — não são, na realidade da vista, mais do que tanto...

O mero voltear de um xaile para cima dos ombros usa hoje mais consciência à visão do gesto em quem o faz do que antigamente. Dantes o xaile era parte do traje; hoje é um detalhe resultante de intuições de puro gozo estético.

Assim, nestes nossos dias, tão vívidos através de fazerem tudo arte, tudo arranca pétalas ao consciente e se integra em volubilidades de extático.

Trânsfugas de quadros não feitos essas figuras femininas todas... Há por vezes detalhes a mais nelas... Certos perfis existem com exagerada nitidez. Brincam a irreais pelo excesso com que se separam, linhas puras, do ambiente fundo.

310.

A minha alma é uma orquestra oculta; não sei que instrumentos tangem e rangem, cordas e harpas, timbales e tambores, dentro de mim. Só me conheço como sinfonia.

Todo o esforço é um crime porque todo o gesto é um sonho morto.

As tuas mãos são rolas  presas. Os teus lábios são rolas mudas (que aos meus olhos vêm arrulhar).

Todos os teus gestos são aves. És andorinha no abaixares-te, condor no olhares-me, águia nos teus êxtases de orgulhosa indiferente. É toda ranger de asas, como dos a lagoa de eu te ver.

Tu és toda alada, toda

Chove, chove, chove...

Chove constantemente,

gemedoramente

O meu corpo treme-me a alma de frio... Não um frio que há no espaço, mas um frio que há em ver a chuva ...

Todo o prazer é um vício, porque buscar o prazer é o que todos fazem na vida, e o único vício negro é fazer o que toda a gente faz.

311.

Às vezes, sem que o espere ou deva esperá-lo, a sufocação do vulgar me toma a garganta e tenho a náusea física da voz e do gesto do chamado semelhante. A náusea física direta, sentida diretamente no estômago e na cabeça, maravilha estúpida da sensibilidade desperta... Cada indivíduo que me fala, cada cara cujos olhos me fitam, afeta-me como um insulto ou como uma porcaria. Extravaso horror de tudo. Entonteço de me sentir senti-los.

E acontece, quase sempre, nestes momentos de desolação estomacal, que há um homem, uma mulher, uma criança até, que se ergue diante de mim como um representante real da banalidade que me agonia. Não representante por uma emoção minha, subjetiva e pensada, mas por uma verdade objetiva, realmente conforme de fora com o que sinto de dentro que surge por magia analógica e me traz o exemplo para a regra que penso.

312.

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