De mais a mais o conferenciador semelha ator — criatura que o bom artista despreza, moço de esquina da Arte.
302.
Descobri que penso sempre, e atendo sempre, a duas coisas no mesmo tempo. Todos, suponho, serão um pouco assim. Há certas impressões tão vagas que só depois, porque nos lembramos delas, sabemos que as tivemos; dessas impressões, creio, se formará uma parte — a parte interna, talvez — da dupla atenção de todos os homens. Sucede comigo que têm igual relevo as duas realidades a que atendo. Nisto consiste a minha originalidade. Nisto, talvez, consiste a minha tragédia, e a comédia dela.
Escrevo atentamente, curvado sobre o livro em que faço a lançamentos a história inútil de uma firma obscura; e ao mesmo tempo o meu pensamento segue, com igual atenção, a rota de um navio inexistente por paisagens de um oriente que não há. As duas coisas estão igualmente nítidas, igualmente visíveis perante mim: a folha onde escrevo com cuidado, nas linhas pautadas, os versos da epopeia comercial de Vasques e Cia, e o convés onde vejo com cuidado, um pouco ao lado da pauta alcatroada dos interstícios das tábuas, as cadeiras longas alinhadas, e as pernas saídas dos que sossegam na viagem.
(Se eu for atropelado por uma bicicleta de criança, essa bicicleta de criança torna-se parte da minha história.)
Intervém a saliência da casa de fumo; por isso só as pernas se veem.
Avanço a pena para o tinteiro e da porta da casa de fumo — quase mesmo ao pé de onde sinto que estou — sai o vulto do desconhecido. Vira-me as costas e avança para os outros. O seu modo de andar é lento e as ancas não dizem muito. É inglês. Começo um outro lançamento. Tento ver porque ia enganado. É a débito e não a crédito da conta do Marques. (Vejo-o gordo, amável, piadista e, num momento, o navio desaparece.)
303.
O mundo é de quem não sente. A condição essencial para se ser um homem prático é a ausência de sensibilidade. A qualidade principal na prática da vida é aquela qualidade que conduz à ação, isto é, a vontade. Ora há duas coisas que estorvam a ação — a sensibilidade e o pensamento analítico, que não é, afinal, mais que o pensamento com sensibilidade. Toda a ação é, pela sua natureza, a projeção da personalidade sobre o mundo externo, e como o mundo externo é em grande e principal parte composto por entes humanos, segue que essa projeção da personalidade é essencialmente o atravessarmo-nos no caminho alheio, o estorvar, ferir e esmagar os outros, conforme o nosso modo de agir.
Para agir é, pois, preciso que nos não figuremos com facilidade as personalidades alheias, as suas dores e alegrias. Quem simpatiza pára. O homem de ação considera o mundo externo como composto exclusivamente de matéria inerte — ou inerte em si mesma, como uma pedra sobre que passa ou que afasta do caminho; ou inerte como um ente humano que, porque não lhe pôde resistir, tanto faz que fosse homem como pedra, pois, como à pedra, ou se afastou ou se passou por cima.
O exemplo máximo do homem prático, porque reúne a extrema concentração da ação com a sua extrema importância, é a do estratégico. Toda a vida é guerra, e a batalha é, pois, a síntese da vida. Ora o estratégico é um homem que joga com vidas como o jogador de xadrez com peças do jogo. Que seria do estratégico se pensasse que cada lance do seu jogo põe noite em mil lares e mágoa em três mil corações? Que seria do mundo se fôssemos humanos? Se o homem sentisse deveras, não haveria civilização. A arte serve de fuga para a sensibilidade que a ação teve que esquecer. A arte é a Gata Borralheira, que ficou em casa porque teve que ser.
Todo o homem de ação é essencialmente animado e otimista porque quem não sente é feliz. Conhece-se um homem de ação por nunca estar mal disposto. Quem trabalha embora esteja mal disposto é um subsidiário da ação; pode ser na vida, na grande generalidade da vida, um guarda-livros, como eu sou na particularidade dela. O que não pode ser é um regente de coisas ou de homens. À regência pertence a insensibilidade. Governa quem é alegre porque para ser triste é preciso sentir.
O patrão Vasques fez hoje um negócio em que arruinou um indivíduo doente e a família. Enquanto fez o negócio esqueceu por completo que esse indivíduo existia, exceto como parte contrária comercial. Feito o negócio, veio-lhe a sensibilidade. Só depois, é claro, pois, se viesse antes, o negócio nunca se faria. "Tenho pena do tipo", disse-me ele. "Vai ficar na miséria." Depois, acendendo o charuto, acrescentou: "Em todo o caso, se ele precisar qualquer coisa de mim" — entendendo-se qualquer esmola — "eu não esqueço que lhe devo um bom negócio e umas dezenas de contos."
O patrão Vasques não é um bandido: é um homem de ação. O que perdeu o lance neste jogo pode, de facto, pois o patrão Vasques é um homem generoso, contar com a esmola dele no futuro.