Читаем Livro do Desassossego полностью

Sim, amanhã, ou outro dia, ou quando quer que soe para mim o sino sem som da morte ou da ida, eu também serei quem aqui já não está, copiador antigo que vai ser arrumado no armário por baixo do vão da escada. Sim, amanhã, ou quando o Destino disser, terá fim o que fingiu em mim que fui eu. Irei para a terra natal? Não sei para onde irei. Hoje a tragédia é visível pela falta, sensível por não merecer que se sinta. O meu Deus, meu Deus, o moço do escritório foi-se embora.

280.

Ó noite onde as estrelas mentem luz, ó noite, única coisa do tamanho do Universo, torna-me, corpo e alma, parte do teu corpo, que eu me perca em ser mera treva e me torne noite também, sem sonhos que sejam estrelas em mim, nem sol esperado que’ ilumine do futuro.

281.

Primeiro é um som que faz um outro som, no côncavo noturno das coisas. Depois é um uivo vago, acompanhado pelo oscilar rasco das tabuletas da rua. Depois, ainda, há um alto de súbito na voz urrada do espaço, e tudo estremece, e não oscila, e há silêncio no medo disto tudo como um medo surdo que vê outro medo quando passado.

Depois não há mais nada senão o vento — só o vento, e reparo com sono que as portas estremecem presas e as janelas dão som de vidro que resiste.

Não durmo. Entresou. Tenho vestígios na consciência. Pesa em mim o sono sem que a inconsciência pese... Não sou. O vento... Acordo e redurmo e ainda não dormi. Há uma paisagem de som alto e torvo para além de que me desconheço. Gozo, recatado, a possibilidade de dormir. Com efeito durmo, mas não sei se durmo. Há sempre no que julgamos que é o som um som de fim de tudo, o vento no escuro, e, se escuto ainda, o som comigo dos pulmões e do coração.

282.

Depois que o fim dos astros esbranqueceu para nada no céu matutino, e a brisa se tornou menos fria no amarelo mal alaranjado da luz sobre as poucas nuvens baixas, pude enfim, eu que não dormira, erguer lentamente o corpo exausto de nada da cama de onde pensara o universo.

Cheguei à janela com os olhos quentes de não estarem fechados. Por sobre os telhados densos a luz fazia diferenças de amarelo pálido. Fiquei a contemplar tudo com a grande estupidez da falta de sono. Nos vultos erguidos das casas altas o amarelo era aéreo e nulo. Ao fundo do ocidente, para onde eu estava virado, o horizonte era já de um branco verde.

Sei que o dia vai ser para mim pesado como não perceber nada. Sei que tudo quanto hoje fizer vai participar, não do cansaço do sono que não tive, mas da insónia que tive. Sei que vou viver um sonambulismo mais acentuado, mais epidérmico, não só porque não dormi, mas porque não pude dormir.

Há dias que são filosofias, que nos insinuam interpretações da vida, que são notas marginais, cheias de grande crítica, no livro do nosso destino universal. Este dia é um dos que sinto tais. Parece-me, absurdamente, que é com os meus olhos pesados e o meu cérebro nulo que, lápis absurdo, se vão traçando as letras do comentário inútil e profundo.

283.

A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do Destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti, se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.

Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.

A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor vêem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram vêem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.

Por isso a morte enobrece, veste de galas desconhecidas o pobre corpo absurdo. É que ali está um liberto, embora o não quisesse ser. É que ali não está um escravo, embora ele chorando perdesse a servidão. Como um Rei cuja maior pompa é o seu nome de rei, e que pode ser risível como homem, mas como rei é superior, assim o morto pode ser disforme, mas é superior, porque a morte o libertou.

Fecho, cansado, as portas das minhas janelas, excluo o mundo e um momento tenho a liberdade. Amanhã voltarei a ser escravo; porém agora, só, sem necessidade de ninguém, receoso apenas que alguma voz ou presença venha interromper-me, tenho a minha pequena liberdade, os meus momentos de excelsis.

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