Parecerá a muitos que este meu diário, feito para mim, é artificial de niais. Mas é do meu natural ser artificial. Com que hei de eu entreter-me, depois, senão com escrever cuidadosamente estes apontamentos espirituais? De resto, não cuidadosamente os escrevo. E, mesmo, sem cuidado limador que os agrupo. Penso naturalmente nesta minha linguagem requintada. Sou um homem para quem o mundo exterior é uma realidade interior. Sinto isto não metafisicamente, mas com os sentidos usuais com que colhemos a realidade. A nossa frivolidade de ontem é hoje uma saudade constante que me rói a vida.
Há claustros na hora. Entardeceu nas esquivanças. Nos olhos azuis dos tanques um último desespero reflete a morte do sol. Nós éramos tanta coisa dos parques antigos; de tão voluptuoso modo estávamos incorporados na presença das estátuas, no talhado inglês das áleas. Os vestidos, os espadins, as perruques, os meneios e os cortejos pertenciam tanto à substância de que o nosso espírito era feito! Nós quem? O repuxo apenas, no jardim deserto, água alada indo já menos alta no seu acto triste de querer voar.
477.
... E os lírios nas margens de rios remotos, frios e solenes, numa tarde eterna no fundo de continentes verdadeiros. Sem mais nada e contudo verdadeiros.
478.
(lunar scene)
Toda a paisagem não está em parte nenhuma.
479.
Em baixo, afastando-se do alto onde estou em desnivelamentos de sombra, dorme ao luar, álgida, a cidade inteira. Um desespero de mim, uma angústia de existir preso a mim extravasa-se por mim todo sem me exceder, compondo-me o ser em ternura, medo, dor e desolação. Um tão inexplicável excesso de mágoa absurda, uma dor tão desolada, tão órfã, tão metafisicamente minha
480.
Alastra ante meus olhos a cidade incerta e silente. As casas desigualam-se num aglomerado retido, e o luar, com manchas de incerteza, estagna de madrepérola os solavancos mortos da profusão. Há telhados e sombras janelas e idade média. Não há de que haver arredores. Pousa no que se vê um vislumbre de longínquo. Por sobre de onde vejo há ramos negros de árvores, e eu tenho o sono da cidade inteira no meu coração dissuadido. Lisboa ao luar e o meu cansaço de amanhã! Que noite! Prouvera a quem causou os pormenores do mundo que não houvesse para mim melhor estado ou melodia que o momento lunar destacado em que me desconheço conhecido. Nem brisa, nem gente interrompe o que não penso. Tenho sono do mesmo modo que tenho vida. Só que sinto nas pálpebras como se houvesse o que fazer-mas pesar. Ouço a minha respiração. Durmo ou desperto?
Custa-me um chumbo dos sentidos o mover-me com os pés para onde moro. A carícia do apagamento, a flor dada do inútil, o meu nome nunca pronunciado, o meu desassossego entre margens, o privilégio de deveres cedidos, e, na última curva do parque avoengo, o outro século como um roseiral.
481.
Entrei no barbeiro no modo do costume, com o prazer de me ser fácil entrar sem constrangimento nas casas conhecidas. A minha sensibilidade do novo é angustiante: tenho calma só onde já tenho estado.
Quando me sentei na cadeira, perguntei, por um acaso que lembra, ao rapaz barbeiro que me ia colocando no pescoço um linho frio e limpo, como ia o colega da cadeira da direita, mais velho e com espírito, que estava doente. Perguntei-lhe sem que me pesasse a necessidade de perguntar: ocorreu-me a oportunidade pelo local e a Lembrança. "Morreu ontem", respondeu sem tom a voz que estava por detrás da toalha e de mim, e cujos dedos se erguiam da última inserção na nuca, entre mim e o colarinho. Toda a minha boa disposição irracional morreu de repente, como o barbeiro eternamente ausente da cadeira ao lado. Fez frio em tudo quanto penso. Não disse nada.
Saudades! Tenho-as até do que me não foi nada, por uma angústia de fuga do tempo e uma doença do mistério da vida. Caras que via habitualmente nas minhas ruas habituais — se deixo de vê-las entristeço; e não me foram nada, a não ser o símbolo de toda a vida.
O velho sem interesse das polainas sujas que cruzava frequentemente comigo às nove e meia da manhã? O cauteleiro coxo que me maçava inutilmente? O velhote redondo e corado do charuto à porta da tabacaria? O dono pálido da tabacaria? O que é feito de todos eles, que, porque os vi e os tornei a ver, foram parte da minha vida? Amanhã também eu me sumirei da Rua da Prata, da Rua dos Douradores, da Rua dos Fanqueiros. Amanhã também eu a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim — sim, amanhã eu também serei o que deixou de passar nestas ruas, o que outros vagamente evocarão com um "o que será dele?". E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade de ruas de uma cidade qualquer.
2º Parte
Os grandes trechos