Читаем Livro do Desassossego полностью

O próprio escrever perdeu a doçura para mim. Banalizou-se tanto, não só o acto de dar expressão a emoções como o de requintar frases, que escrevo como quem come ou bebe, com mais ou menos atenção, mas meio alheado e desinteressado, meio atento, e sem entusiasmo nem fulgor.

470.

Falar é ter demasiada consideração pelos outros. Pela boca morrem o peixe e Óscar Wilde.

471.

Desde que possamos considerar este mundo uma ilusão e um fantasma, poderemos considerar tudo que nos acontece como um sonho, coisa que fingiu ser porque dormíamos. E então nasce em nós uma indiferença subtil e profunda para com todos os desaires e desastres da vida. Os que morrem viraram a uma esquina, e por isso os deixámos de ver; os que sofrem passam perante nós, se sentimos, como um pesadelo, se pensamos, como um devaneio ingrato. E o nosso próprio sofrimento não será mais que esse nada. Neste mundo dormimos sobre o lado esquerdo e ouvimos nos sonhos a existência opressa do coração.

Mais nada... Um pouco de sol, um pouco de brisa, umas árvores que emolduram a distância, o desejo de ser feliz, a mágoa de os dias passarem, a ciência sempre incerta e a verdade sempre por descobrir... Mais nada, mais nada... Sim, mais nada...

472.

Atingir, no estado místico, só o que esse estado tem de grato sem o que tem de exigente; ser o extático de deus nenhum, o místico ou epopta’ sem iniciação; passar o curso dos dias na meditação de um paraíso em que se não crê — isto tudo sabe bem à alma, se ela conhece o que é desconhecer.

Vão altas, por cima de onde estou, corpo dentro de uma sombra, as nuvens silenciosas; vão altas, por cima de onde estou, alma cativa num corpo, as verdades incógnitas... Vai alto tudo... E tudo passa no alto como em baixo, sem nuvem que deixe mais do que chuva ou verdade que deixe mais do que dor... Sim, tudo o que é alto passa alto, e passa; tudo o que é de apetecer esta longe e passa longe... Sim, tudo atrai, tudo é alheio e tudo passa.

Que me importa saber, ao sol ou à chuva, corpo ou alma, que passarei também? Nada, salvo a esperança de que tudo seja nada e portanto o nada seja tudo.

473.

Em qualquer espírito, que não seja disforme, existe a crença em Deus. Em qualquer espírito, que não seja disforme, não existe crença num Deus definido. É qualquer ente, existente e impossível, que rege tudo; cuja pessoa, se a tem, ninguém pode definir; cujos fins, se deles usa, ninguém pode compreender. Chamando-lhe Deus dizemos tudo, porque, não tendo a palavra Deus sentido algum preciso, assim o afirmamos sem dizer nada. Os atributos de infinito, de eterno, de omnipotente, de sumamente justo ou bondoso, que por vezes lhe colamos, descolam-se por si como todos os adjetivos desnecessários quando o substantivo basta. E Ele, a que, por indefinido, não podemos dar atributos, é, por isso mesmo, o substantivo absoluto. A mesma certeza e o mesmo vago existem quanto à sobrevivência da alma. Todos nós sabemos que morremos; todos nós sentimos que não morreremos. Não é bem um desejo, nem uma esperança, que nos traz essa visão no escuro de que a morte é um mal-entendido: é um raciocínio feito com as entranhas, que repudia

474.

Um dia

Em vez de almoçar — necessidade que tenho de fazer acontecer-me todos os dias — fui ver o Tejo, e voltei a vaguear pelas ruas sem mesmo supor que achei útil à alma vê-lo. Ainda assim...

Viver não vale a pena. Só olhar é que vale a pena. Poder olhar sem viver realizaria a felicidade, mas é impossível, como tudo quanto costuma ser o que sonhamos. O êxtase que não incluísse a vida!...

Criar ao menos um pessimismo novo, uma nova negação, para que tivéssemos a ilusão que de nós alguma coisa, ainda que para mal, ficava!

475.

De que é que você está  a rir?, perguntou-me sem mal a voz do Moreira de entre para lá das duas prateleiras do meu alçado. Era uma troca de nomes que eu ia..., e acalmei os pulmões ao falar. Ah, disse o Moreira rapidamente, e a paz poeirosa desceu de novo sobre o escritório e sobre mim.

O senhor Visconde de Chateaubriand aqui a fazer contas! O senhor professor Amiel aqui num banco alto real! O senhor Conde Alfred de Vigny a debitar o Grandela! Senancour nos Douradores! Nem o Bourget, coitado, que custa a ler como uma escada sem elevador... Volto-me para trás do parapeito para ver bem de novo o meu Boulevard de Saint Germain, e justamente nesta altura o sócio do roceiro está cuspindo para a rua. E entre pensar tudo isto e estar fumando, e não ligar bem uma coisa e outra, o riso mental encontra o fumo, e, embrulhando-se na garganta, expande-se num ataque tímido de riso audível.

476.

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