Nos meus parques, sono morto, a sonolência dos tanques ao sol-alto, quando os rumores dos insetos chusmam na hora e me pesa viver, não como uma mágoa, mas como uma dor física por concluir.
Palácios muito longe, parques absortos, a estreiteza das áleas ao longe, a graça morta dos bancos de pedra para os que foram — pompas mortas, graça desfeita, ouropel perdido. O meu anseio que esqueço, quem me dera recuperar a mágoa com que te sonhei.
463.
Sossego enfim. Tudo quanto foi vestígio e desperdício some-se-me da alma como se não fora nunca. Fico só e calmo. A hora que passo é como aquela em que me convertesse a uma religião. Nada porém me atrai para o alto, ainda que nada já me atraia para baixo. Sinto-me livre, como se deixasse de existir, conservando a consciência disso.
Sossego, sim, sossego. Uma grande calma, suave como uma inutilidade, desce em mim ao fundo do meu ser. As páginas lidas, os deveres cumpridos, os passos e os acasos de viver — tudo isso se me tornou numa vaga penumbra, num halo mal visível, que cerca qualquer coisa tranquila que não sei o que é. O esforço, em que pus, uma ou outra vez, o esquecimento da alma; o pensamento, em que pus, uma vez ou outra, o esquecimento da ação — ambos se me volvem numa espécie de ternura sem sentimento, de compaixão fruste e vazia.
Não é o dia lento e suave, nublado e brando. Não é a aragem imperfeita, quase nada, pouco mais do que o ar que já se sente. Não é a cor anónima do céu aqui e ali azul, frouxamente. Não. Não, porque não sinto. Vejo sem intenção nem remédio. Assisto atento a espetáculo nenhum. Não sinto alma, mas sossego. As coisas externas, que estão nítidas e paradas, ainda as que se movem, são para mim como para o Cristo seria o mundo, quando, da altura de tudo, Satã o tentou. São nada, e compreendo que o Cristo se não tentasse. São nada, e não compreendo como Satã, velho de tanta ciência, julgasse que com isso tentaria.
Corre leve, vida que se não sente, riacho em silêncio móbil sob árvores esquecidas! Corre branda, alma que se não conhece, murmúrio que se não vê para além de grandes ramos caídos! Corre inútil, corre sem razão, consciência que o não é de nada, vago brilho ao longe, entre clareiras de folhas, que não se sabe de onde vem nem onde vai! Corre, corre, e deixa-me esquecer!
Vago sopro do que não ouso viver, hausto frustei do que não pôde sentir, murmúrio inútil do que não quis pensar, vai lento, vai frouxo, vai em torvelinhos que tens que ter e em declives que te dão, vai para a sombra ou para a luz, irmão do mundo, vai para a glória ou para o abismo, filho do Caos e da Noite, lembrando ainda, em qualquer recanto teu, de que os Deuses vieram depois, e de que os Deuses passam também.
464.
Quem tenha lido as páginas deste livro, que estão antes desta, terá sem dúvida formado a ideia de que sou um sonhador. Ter-se-ia enganado se a formou. Para ser sonhador falta-me o dinheiro.
As grandes melancolias, as tristezas cheias de tédio, não podem existir senão com um ambiente de conforto e de sóbrio luxo. Por isso o Egeus de Poe, concentrado horas e horas numa absorção doentia, o faz num castelo antigo, ancestral, onde, para além das portas da grande sala onde jaz a vida, mordomos invisíveis administram a casa e a comida.
O grande sonho requer certas circunstâncias sociais. Um dia que, embevecido por certo movimento rítmico e dolente do que escrevera, me recordei de Chateaubriand, não tardou que me lembrasse de que eu não era visconde, nem sequer bretão. Outra vez que julguei sentir, no sentido do que dissera, uma semelhança com Rousseau, não tardou, também, que me ocorresse que, não tendo tido o privilégio de ser fidalgo e castelão, também o não tivera de ser suíço e vagabundo.
Mas, enfim, também há universo na Rua dos Douradores. Também aqui Deus concede que não falte o enigma de viver. E por isso, se são pobres, como a paisagem de carroças e caixotes, os sonhos que consigo extrair de entre as rodas e as tábuas, ainda assim são para mim o que tenho, e o que posso ter.
Alhures, sem dúvida, é que os poentes são. Mas até deste quarto andar sobre a cidade se pode pensar no infinito. Um infinito com armazéns em baixo, é certo, mas com estrelas ao fim... E o que me ocorre, neste acabar de tarde, à janela alta, na insatisfação do burguês que não sou e na tristeza do poeta que nunca poderei ser.
465.
Quando o estio entra entristeço. Parece que a luminosidade, ainda que acre, das horas estivais devera acarinhar quem não sabe quem é. Mas não, a mim não me acarinha. Há um contraste demasiado entre a vida externa que exubera e o que sinto e penso, sem saber sentir nem pensar – o cadáver perenemente insepulto das minhas sensações. Tenho a impressão de que vivo, nesta pátria informe chamada o universo, sob uma tirania política que, ainda que me não oprima diretamente, todavia ofende qualquer oculto princípio da minha alma. E então desce em mim, surdamente, lentamente, a saudade antecipada do exílio impossível.