Читаем Livro do Desassossego полностью

Tenho principalmente sono. Não um sono que traz latente, como todos os sonos, ainda os mórbidos, o privilégio físico do sossego. Não um sono que, porque vai esquecer a vida, e porventura trazer sonhos, traz na bandeja com que nos vem até à alma as oferendas plácidas de uma grande abdicação. Não: este é um sono que não consegue dormir, que pesa nas pálpebras sem as fechar, que junta num gesto que se sente ser de estupidez e repulsa as comissuras sentidas dos beiços descrentes. Este é um sono como o que pesa inutilmente sobrei o corpo nas grandes insónias da alma.

Só quando vem a noite de algum modo sinto, não uma alegria, mas um repouso que, por outros repousos serem contentes, se sente contente por analogia dos sentidos. Então o sono passa, a confusão do lusco-fusco mental que esse sono dera esbate-se, esclarece-se, quase se ilumina. Vem, um momento, a esperança de outras coisas. Mas essa esperança é breve. O que sobrevém é um tédio sem sono nem esperança, o mau despertar de quem não chegou a dormir. E da janela do meu quarto fito, pobre alma cansada de corpo, muitas estrelas; muitas estrelas, nada, o nada, mas muitas estrelas...

466.

O homem não deve poder ver a sua própria cara. Isso é o que há de mais terrível. A Natureza deu-lhe o dom de não a poder ver, assim como de não poder fitar os seus próprios olhos.

Só na água dos rios e dos lagos ele podia fitar seu rosto. E a postura, mesmo, que tinha de tomar, era simbólica. Tinha de se curvar, de se baixar para cometer a ignomínia de se ver.

O criador do espelho envenenou a alma humana.

467.

Ouvia-me lendo os meus versos — que nesse dial li bem, porque me distraí — e disse-me, com a simplicidade de uma lei natural: "Você, assim, e com outra cara, seria um grande fascinador." A palavra «cara», mais que a referência que continha, ergueu-me de mim pela gola do que me não conheço.

Vi o espelho do meu quarto, o meu pobre rosto de mendigo sem pobreza; e de repente o espelho virou-se  e o espectro da Rua dos Douradores abriu-se diante de mim como um nirvana do carteiro.

A acuidade das minhas sensações chega a ser uma doença que me é alheia. Sofre-a outro de quem eu sou a parte doente, porque verdadeiramente sinto como em dependência de uma maior capacidade de sentir. Sou como um tecido especial, ou até uma célula, sobre a qual pesasse toda a responsabilidade de um organismo.

Se penso, é porque divago; se sonho, é porque estou desperto. Tudo em mim se embrulha comigo, e não tem forma de saber de ser.

468.

Quando vivemos constantemente no abstrato — seja o abstrato do pensamento, seja o da sensação pensada -, não tarda que, contra nosso mesmo sentimento ou vontade, se nos tornem fantasmas aquelas coisas da vida real que, em acordo com nós mesmos, mais deveríamos sentir.

Por mais amigo, e verdadeiramente amigo, que eu seja de alguém, o saber que ele está doente, ou que morreu, não me dá mais que uma impressão vaga, incerta, apagada, que me envergonho de sentir. Só a visão direta do caso, a sua paisagem, me daria emoção. À força de viver de imaginar, gasta-se o poder de imaginar, sobretudo o de imaginar o real. Vivendo mentalmente do que não há nem pode haver, acabamos por não poder cismar o que pode haver.

Disseram-me hoje que tinha entrado para o hospital, para ser operado, um velho amigo meu, que não vejo há muito tempo, mas que sinceramente lembro sempre com o que suponho ser saudade. A única sensação que recebi, de positiva e de clara, foi a da maçada que forçosamente me daria o ter de ir visitá-lo, com a alternativa irónica de, não tendo paciência para a visita, ficar arrependido de a não fazer.

Nada mais... De tanto lidar com sombras, eu mesmo me converti numa sombra — no que penso, no que sinto, no que sou. A saudade do normal que nunca fui entra então na substância do meu ser. Mas é ainda isso, e só isso, que sinto. Não sinto propriamente pena do amigo que vai ser operado. Não sinto propriamente pena de todas as pessoas que vão ser operadas, de todos quantos sofrem e penam neste mundo. Sinto pena, tão-somente, de não saber ser quem sentisse pena.

E, num momento, estou pensando em outra coisa, inevitavelmente, por um impulso que não sei o que é. E então, como se estivesse delirando, mistura-se-me com o que não cheguei a sentir, com o que não pude ser, um rumor de árvores, um som de água correndo para tanques, uma quinta inexistente... Esforço-me por sentir, mas já não sei como se sente. Tornei-me a sombra de mim mesmo, a quem entregasse o meu ser. Ao contrário daquele Peter Schlemil do conto alemão, não vendi ao Diabo a minha sombra, mas a minha substância. Sofro de não sofrer, de não saber sofrer. Vivo ou finjo que vivo? Durmo ou estou desperto? Uma vaga aragem, que sai fresca do calor do dia, faz-me esquecer tudo. Pesam-me as pálpebras agradavelmente... Sinto que este mesmo sol doira os campos onde não estou e onde não quero estar... Do meio dos ruídos da cidade sai um grande silêncio... Que suave! Mas que mais suave, talvez, se eu pudesse sentir!...

469.

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