A Divina inveja
Sempre que tenho uma sensação agradável em companhia de outros, invejo-lhes a parte que tiveram nessa sensação. Parece-me um impudor que eles sentissem o mesmo do que eu, que me devassassem a alma por intermédio da alma, unissonamente sentindo, deles.
A grande dificuldade do orgulho que para mim oferece a contemplação das paisagens, é a dolorosa circunstância de já as haver com certeza contemplado alguém com um intuito igual.
A horas diferentes, é certo, e em outros dias. Mas fazer-me notar isso seria acariciar-me e amansar-me com uma escolástica que sou superior a merecer. Sei que pouco importa a diferença, que com o mesmo espírito em olhar, outros tiveram ante a paisagem um modo de ver, não como, mas parecido com o meu.
Esforço-me por isso para alterar sempre o que vejo de modo a torná-lo irrefragavelmente meu — de alterar, mentindo — o momento belo e na mesma ordem de linha de beleza, a linha do perfil das montanhas; de substituir certas árvores e flores por outras, vastamente as mesmas diferentissimamente; de ver outras cores de efeito idêntico no poente — e assim crio, de educado que estou, e com o próprio gesto de olhar com que espontaneamente vejo, um modo interior do exterior.
Isto, porém, é o grau ínfimo de substituição do visível. Nos meus bons e abandonados momentos de sonho arquiteto muito mais.
Faço a paisagem ter para mim os efeitos da música, evocar-me imagens visuais — curioso e dificílimo triunfo do êxtase, tão difícil porque o agente evocativo é da mesma ordem de sensações que o que há de evocar,
O meu triunfo máximo no género foi quando, a certa hora ambígua de aspeto e luz, olhando para o Cais do Sodré nitidamente o vi um pagode chinês com estranhos guizos nas pontas dos telhados como chapéus absurdos — curioso pagode chinês pintado no espaço, sobre o espaço-cetim, não sei como, sob o espaço que perdura na abominável terceira dimensão. E a hora cheirou-me verdadeiramente a um ruído arrastado e longínquo e com uma grande inveja de realidade...
Carta
Assim soubesses tu compreender o teu dever de seres meramente o sonho de um sonhador. Seres apenas o turíbulo da catedral dos devaneios. Talhares os teus gestos como sonhos, para que fossem apenas janelas abertas para paisagens novas da tua alma. De tal modo arquitetar o teu corpo em arremedos de sonho que não fora possível ver-te sem pensar noutra coisa, que lembrasses tudo menos tu própria, que ver-te fosse ouvir música e atravessar, sonâmbulo, grandes paisagens de lagos mortos, vagas florestas silenciosas perdidas ao fundo doutras épocas, onde invisíveis pares diversos vivem sentimentos que não temos.
Eu não te quereria para nada senão para te não ter. Queria que, sonhando eu e se tu aparecesses, eu pudesse imaginar-me ainda sonhando — nem te vendo talvez, mas talvez reparando que o luar enchera de os lagos mortos e que ecos de canções ondeavam subitamente na grande floresta inexplícita, perdida em épocas impossíveis.
A visão de ti seria o leito onde a minha alma adormecesse, criança doente, para sonhar outra vez com outro céu. Falares? Sim, mas que ouvir-te fosse não te ouvir mas ver grandes pontes ao luar ligar as duas margens escuras do rio que vai ter ao ancião mar onde as caravelas são nossas para sempre.
Sorris? Eu não sabia disso, mas nos meus céus interiores andavam as estrelas. Chamas-me dormindo. Eu não reparava nisso mas no barco longínquo cuja vela de sonho ia sob o luar, vejo longínquas marinhas.
Cascata
A criança sabe que a boneca não é real, e trata-a como real, até chorá-la e se desgostar quando se parte. A arte da criança é de irrealizar. Bendita essa idade errada da vida, quando se nega a vida’ por não haver sexo, quando se nega a realidade por brincar, tomando por reais a coisas que o não são!