— Ser'a. J'a vamos a isso. O que lhe peco que note 'e que 'e
— Reparei.
— Veja agora bem o que isso representa.. Um grupo pequeno, de gente sincera (garanto-lhe que era sincera!), estabelecido e unido expressamente para trabalhar pela causa da liberdade, tinha, no fim de uns meses, conseguido s'o uma coisa de positivo e concreto —
«Agora ponha o caso num grupo muito maior, muito mais influente, tratando j'a de quest~oes importantes e de decis~oes de car'acter fundamental. Ponha esse grupo a eneaminhar os seus esfonjos, como o nosso, para a formac~ao de uma sociedade livre. E agora diga-me se atrav'es desse carregamento de tiranias entrecruzadas voc^e entrev^e qualquer sociedade futura que se pareca com uma sociedade livre ou com uma humanidade digna de si pr'opria…
— Sim: isso 'e muito curioso…
— 'E curioso, n~ao 'e?… E olhe que h'a pontos secund'arios tamb'em muito curiosos… Por exemplo: a tirania do aux'ilio…
— A qu'e?
— A tirania do aux'ilio. Havia entre n'os quem, em vez de mandar nos outros, em vez de se impor aos outros, pelo contr'ario os auxiliava em tudo quanto podia. Parece o contr'ario, n~ao 'e verdade? Pois olhe que 'e o mesmo. 'E a mesma tirania nova. 'E do mesmo modo ir contra os princ'ipios anarquistas.
— Essa 'e boa! Em qu^e?
— Auxiliar algu'em, meu amigo, 'e tomar algu'em por incapaz; se algu'em n~ao 'e incapaz, 'e ou faz^e-lo tal, ou sup^olo tal, e isto 'e, no primeiro caso uma tirania, e no segundo um desprezo. Num caso cerceia-se a liberdade de outrem; no outro caso parte-se, pelo menos inconscientemente, do princ'ipio de que outrem 'e desprez'ivel e indigno ou incapaz de liberdade.
«Voltemos ao nosso caso… Voc^e v^e bem que este ponto era grav'issimo. V'a que trabalh'assemos pela sociedade futura sem esperarmos que ela nos agradecesse, ou arriscandonos, mesmo, a que ela nunca viesse. Tudo isso, v'a. Mas o que era de mais era estarmos trabalhando para um futuro de liberdade e n~ao fazermos, de positivo, mais que criar tirania, e n~ao s'o tirania, mas tirania nova, e tirania exercida por n'os, os oprimidos, uns sobre os outros. Ora isto 'e que n~ao podia ser…
Pus-me a pensar. Aqui havia um erro, um desvio qualquer. Os nossos intuitos eram bons; as nossas doutrinas pareciam certas; seriam errados os nossos processos? Com certeza que deveriam ser. Mas onde diabo estava o erro? Pus-me a pensar nisso e ia dando em doido. Um dia, de repente, como acontece sempre nestas coisas, dei com a soluc~ao. Foi o grande dia das minhas teor'ias anarquistas: o dia em que descobri, por assim dizer, a t'ecnica do anarquismo.
Olhou-me um momento sem me olhar. Depois continuou, no mesmo tom.