«Vieram-me momentos de descrenca; e voc^e compreende que era justificada… Sou materialista, pensava eu; n~ao tenho mais vida que esta; para que hei-de ralar-me com propagandas e desigualdades sociais, e outras hist'orias, quando posso gozar e entreter-me muito mais se n~ao me preocupar com isso? Quem tem s'o esta vida, quem n~ao сr^e na vida eterna, quem n~ao admite lei sen~ao a Natureza, quem se op~oe ao Estado porque ele n~ao 'e natural, ao casamento porque ele n~ao 'e natural, a todas as ficc~oes sociais porque elas n~ao s~ao naturais, por que carga de 'agua 'e que defende o altru'ismo e o sacrif'icio pelos outros, ou pela humanidade, se o altru'ismo e o sacrif'icio tamb'em n~ao s~ao naturais? Sim, a mesma l'ogica que me mostra que um homem n~ao nasce para ser casado, ou para ser portugu^es, ou para ser rico ou pobre, mostra-me tamb'em que ele n~ao nasce para ser
«Eu discut'i a situac~ao comigo mesmo. Repara tu, dizia eu para mim, que nascemos pertencentes `a esp'ecie humana, e que temos o dever de ser solid'arios com todos os homens. Mas a ideia de «dever» era natural? De onde 'e que vinha esta ideia de «dever»? Se esta ideia de dever me obrigava a sacrificar o meu bem-estar, a minha comodidade, o meu instinto de conservac~ao e outros meus instintos naturais, em que diverg'ia a acc~ao dessa ideia da acc~ao de qualquer ficc~ao social, que produz em n'os exactamente o mesmo efeito?
«Esta ideia de dever, isto de solidariedade humana, s'o podia considerar-se natural
«Confesso-lhe, meu velho, que me vieram momentos de descrenca… Senti-me desleal `a minha doutrina, traidor a ela… Mas em breve passei sobre tudo isto. A ideia de justiga c'a estava, dentro de mim, pensei eu. Eu sentia-a natural. Eu sentia que havia um dever superior `a preocupac~ao s'o c'a do meu destino. E fui para diante na minha intenc~ao.
— N~ao me parece que essa decis~ao revelasse uma grande lucidez da sua parte… Voc^e n~ao resolveu a dificuldade… Voc^e foi para diante por um impulso absolutamente sentimental…
— Sem d'uvida. Mas o que lhe estou contando agora 'e a hist'oria de como me tornei anarquista, e de como o continuei sendo, e continuo. Vou-lhe expondo lealmente as hesitac~oes e as dificuldades que tive, e como as venci. Concordo que, naquele momento, venci a dificuldade l'ogica com o sentimento, e n~ao com o raciocinio. Mas voc^e h'a-de ver que, mais tarde, quando cheguei `a plena compreens~ao da doutrina anarquista, esta dificuldade, at'e ent~ao l'ogicamente sem resposta, teve a sua soluc~ao completa e absoluta.
— 'E curioso…
— 'E… Agora deixe-me continuar na minha hist'oria. Tive esta dificuldade, e resolvi-a, se bem que mal, como lhe disse. Logo a seguir, e na linha dos meus pensamentos, surgiu-me outra dificuldade que tamb'em me atrapalhou bastante.