«Estava bem — vamos l'a — que estivesse disposto a sacrificar-me, sem recompensa nenhuma propriamente pessoal, isto 'e, sem recompensa nenhuma verdadeiramente
«Expus esta conclus~ao, ou, antes, estas conclus~oes, aos meus camaradas, e eles concordaram todos comigo; concordaran! todos que era preciso ir pr`a frente e fazer tudo pela sociedade livre. 'E verdade que um ou outro, dos mais inteligentes, ficaram um pouco abalados com a exposic~ao, n~ao porque n~ao concordassem, mas porque nunca tinham visto as coisas assim claras, nem os bicos que estas coisas t'em… Mas enf'im, concordaram todos… Ir'iamos todos traba-lhar pela grande revoluc~ao social, pela sociedade livre, quer o futuro nos justif'icasse, quer n~ao! Form'amos um grupo, entre gente certa, e comec~amos uma grande propaganda — grande, 'e claro, dentro dos limites do que pod'iamos fazer. Durante bastante tempo, no meio de dif'iculdades, embrulhadas, e por vezes perseguic~oes, l'a fomos trabalhando pelo ideal anarquista.
O banqueiro, chegado aqui, fez uma pausa um pouco longa. N~ao acendeu o charuto, que estava outra vez apagado. De repente teve um leve sorriso, e, com o ar de quem chega ao ponto importante, fitou-me com mais insist^encia e prosseguiu, clarificando mais a voz e acentuando mais as palavras.
— Nesta altura — disse ele —, apareceu uma coisa nova. «Nesta altura» 'e modo de dizer. Quero dizer que, depois de alguns meses desta propaganda, comecei a reparar numa nova complicac~ao, e esta 'e que era a mais s'eria de todas, esta 'e que era s'eria a valer…
«Voc^e recorda-se, n~ao 'e verdade? daquilo em que eu, por um racioc'inio rigoroso, assentei que devia ser o processo de acc~ao dos anarquistas… Um processo, ou processos quaisquer, pelo qual se contribu'isse para destruir as ficc~oes sociais sem, ao mesmo tempo, estorvar a criac~ao da liberdade futura, sem, portanto, estorvar em coisa nenhuma a pouca liberdade dos actuais oprimidos pelas ficc~oes sociais; um processo que, sendo poss'ivel, criasse j'a alguma coisa da liberdade futura…
«Pois bem: uma vez assente este crit'erio, nunca mais deixei de o ter presente… Ora, na altura da nossa propaganda em que lhe estou falando, descobri uma coisa. No grupo de propaganda — n~ao 'eramos muitos; 'eramos uns quarenta, salvo erro — dava-se este caso:
— Criava-se tirania?… Criava-se tirania como?
— Da seguinte maneira… Uns mandavam em outros e levavam-nos para onde queriam; uns impunham-se a outros e obrigavam-nos a ser o que eles queriam; uns arrastavam outros por manhas e por artes para onde eles queriam. N~ao digo que fizessem isto em coisas graves; mesmo, n~ao havia coisas graves ali em que o fizessem. Mas o facto 'e que isto acontec'ia sempre e todos os dias, e dava-se n~ao s'o em assuntos relacionados com a propaganda, como fora deles, em assuntos vulgares da vida. Uns iam insensivelmente para chefes, outros insensivelmente para subordinados. Uns eram chefes por imposic~ao; outros eram chefes por manha. No facto mais simples isto se via. Por exemplo: dois rapazes iam juntos por uma r'ua fora; chegavam ao fim da r'ua, e um tinha que ir para a direita e outro para esquerda; cada um tinha conveni^encia em ir para o seu lado. Mas o que ia para a esquerda dizia para o outro «Venha voc^e comigo por aqui»; o outro respondia, e era verdade: «Homem, n~ao posso; tenho que ir por ali» por esta ou aquela raz~ao… Mas afinal, contra sua vontade e sua conveni^encia, l'a ia com o outro para a esquerda… Isto era uma vez por persuas~ao, outra vez por simples insist^encia, uma terceira vez por um outro motivo qualquer assim… Isto 'e, nunca era por uma raz~ao l'ogica; havia sempre nesta imposic~ao e nesta subordinac~ao qualquer coisa de espont^aneo, de como que instintivo… E como neste caso simples, em todos os outros casos; desde os menos at'e aos mais importantes… Voc^e v^e bem o caso?
— Vejo. Mas que diabo h'a de estranho nisso? Isso 'e tudo quanto h'a de mais natural!..