– Para mim, ao contrário, nada podia ser mais claro. Deixe-me mostrar-lhe os passos principais. Nada sabíamos do caso quando começamos a trabalhar nele, o que é sempre uma vantagem. Não tínhamos teorias prontas. Estávamos lá simplesmente para observar e tirar conclusões de nossas observações. O que foi que vimos primeiro? Uma senhora respeitável e calma, que parecia totalmente inocente de qualquer crime, e um retrato que mostrou ter ela duas irmãs mais jovens. Imediatamente me ocorreu que a caixa podia ser destinada a uma delas. Deixei a idéia de lado, já que ela poderia ser abandonada ou confirmada, à nossa vontade, mais tarde. Então fomos para o jardim, como você se lembra, e vimos o estranho conteúdo da caixinha amarela. O barbante era do tipo usado por marinheiros e logo um bafejo do mar era perceptível em nossa investigação. Quando observei que o nó era comum entre marinheiros, que o pacote havia sido mandado de um porto e que a orelha masculina fora furada para uso de brinco, coisa mais comum entre gente do mar do que de terra, tive certeza de que todos os personagens da tragédia seriam encontrados entre nossas classes marítimas. Quando examinei o endereço no pacote, vi que era para a senhorita S. Cushing. Ora, a irmã mais velha seria, é claro, a senhorita Cushing e, embora sua inicial fosse “S”, poderia pertencer também a uma das outras duas. Nesse caso teríamos de reiniciar nossa investigação em uma nova base. Assim sendo, entrei na casa com a intenção de esclarecer este ponto. Eu estava prestes a dizer a ela que me convencera de que fora cometido um equívoco quando, você deve se lembrar, eu parei de repente. O fato é que eu acabara de ver uma coisa que me encheu de surpresa e, ao mesmo tempo, diminuiu consideravelmente o campo de nossa pesquisa. Você, como médico, Watson, sabe que não existe parte do corpo humano que varie tanto quanto uma orelha. Cada uma é, como regra geral, completamente distinta e diferente das demais. No último número do Jornal Antropológico você vai encontrar duas pequenas monografias que escrevi sobre o assunto. Portanto, eu tinha examinado as orelhas na caixa com os olhos de um especialista e percebi as particularidades anatômicas. Imagine agora minha surpresa quando, ao olhar para a srta. Cushing, notei que a orelha dela correspondia exatamente à orelha feminina que eu tinha acabado de examinar. O caso era mais do que uma coincidência. Ali estava a mesma aurícula curta, a mesma curva aberta do lóbulo superior, o mesmo desenho da cartilagem interna. No essencial, era a mesma orelha. Claro que vi logo a enorme importância da observação. Era lógico que a vítima era um parente, provavelmente bem próximo. Comecei a conversar com ela sobre a família, e você se lembra de que ela nos deu imediatamente detalhes excelentes e valiosos. Em primeiro lugar, o nome da irmã era Sarah, e o endereço era o mesmo até recentemente, e assim ficou claro como tinha ocorrido o engano e a quem se destinava o pacote. Ela falou, então, do comissário de bordo, casado com a terceira irmã, e soubemos que, em certa época, ele ficou tão íntimo da srta. Sarah que ela até acabou se mudando para Liverpool a fim de ficar perto dos Browners, mas uma briga os afastou mais tarde. Esta briga interrompeu as comunicações durante meses, de modo que, se Browner tivesse que endereçar um pacote à srta. Sarah, sem dúvida nenhuma usaria o antigo endereço. E agora o assunto começou a se esclarecer maravilhosamente. Sabíamos da existência de Browner, um homem impulsivo, de paixões fortes – lembre-se de que ele abandonou um emprego bem superior a fim de ficar mais perto da esposa; um homem também sujeito a bebedeiras ocasionais. Tínhamos motivo para supor que sua esposa fora assassinada e que um homem – possivelmente um homem do mar – também fora morto. Como motivo do crime surge-nos imediatamente o ciúme. Por que a srta. Sarah Cushing deveria receber as provas do crime? Provavelmente porque, durante sua estada em Liverpool, ela, de alguma forma, tinha participado dos acontecimentos que culminaram com a tragédia. Note que esta linha de navios aporta em Belfast, Dublin e Waterford; dessa forma, supondo-se que Browner tenha cometido o crime e embarcado em seguida no seu navio, o May Day, Belfast seria o primeiro lugar de onde ele poderia enviar sua terrível encomenda. Nesta altura, uma segunda solução seria possível, e embora a considere muito improvável, eu estava decidido a elucidá-la antes de seguir em frente. Um apaixonado frustrado poderia ter matado o sr. e sra. Browner, e a orelha masculina podia ser a do marido. Havia muitas objeções graves a esta teoria, mas era possível. Então mandei um telegrama ao meu amigo Algar, da polícia de Liverpool, e pedi-lhe para verificar se a sra. Browner estava em casa e se o marido tinha embarcado no May Day. Depois disso fomos para Wallington, visitar a srta. Sarah. Em primeiro lugar, eu estava curioso para ver até que ponto o tipo de orelha da família estava reproduzido nela. Além disso, é lógico, ela podia nos dar informações importantes, mas eu não estava muito convencido que ela iria fazê-lo. Ela deve ter ouvido falar no caso no dia anterior, já que toda Croydon falava do assunto, e ela mesma deve ter compreendido a quem se destinava o pacote. Se ela estivesse disposta a ajudar a polícia, já teria entrado em contato com as autoridades. Entretanto, era nosso dever visitá-la, e fomos. Descobrimos que a notícia da chegada do pacote – já que a doença dela data desse dia – teve um impacto enorme sobre ela, até mesmo provocando uma febre cerebral. Estava mais do que claro que ela percebera o significado, mas também estava claro que nós teríamos de esperar algum tempo até recebermos alguma ajuda da parte dela. Em todo caso, não dependeríamos totalmente dela. Tínhamos respostas à nossa espera na delegacia, para onde pedi que Algar as enviasse. Nada podia ser mais conclusivo. A casa da sra. Browner estava fechada havia mais de três dias e os vizinhos achavam que ela viajara para o sul, para visitar parentes. Verificou-se nos escritórios da companhia que Browner partira a bordo do May Day e eu calculo que ele esteja no Tâmisa amanhã à noite. Quando ele chegar, o obtuso mas decidido Lestrade estará esperando por ele, e eu não tenho nenhuma dúvida de que completaremos todos os detalhes.