– Há objeções à teoria da brincadeira, é claro – disse ele –, mas há razões mais fortes contra a outra. Sabemos que esta mulher levava uma vida tranqüila e respeitável em Penge e também aqui durante os últimos vinte anos. Ela quase nunca ficou fora de casa, por um dia sequer, durante esse tempo. Por que, então, um criminoso lhe enviaria as provas de sua culpa, principalmente quando ela entende tão pouco do assunto quanto nós, a não ser que seja uma atriz consumada?
– Este é o problema que nós temos de resolver – respondeu Holmes –, e de minha parte eu vou partir do pressuposto de que meu raciocínio está correto e que foi cometido um duplo assassinato. Uma destas orelhas é de mulher, pequena, delicada, furada para uso de brinco; a outra é de homem, queimada de sol, descorada e também com um furo para brinco. Provavelmente essas duas pessoas estão mortas, ou já teríamos ouvido o caso antes. Hoje é sexta-feira. O pacote foi enviado na quinta de manhã. A tragédia aconteceu, então, na terça ou na quarta, ou mesmo antes. Se as duas pessoas foram mortas, quem, a não ser o assassino, mandaria para a srta. Cushing a prova de seu crime? Podemos supor que o remetente do pacote seja o homem que queremos. Mas ele deve ter tido um motivo muito forte para enviar o pacote à srta. Cushing. Que motivo? Deve ser o de comunicar a ela que o destino se cumpriu, ou para feri-la, talvez; mas, neste caso, ela saberia quem é ele. Será que ela sabe? Duvido. Se soubesse, por que chamaria a polícia? Ela teria enterrado as orelhas e ninguém ficaria sabendo de nada. Isso é o que ela faria se quisesse proteger o criminoso. Mas, se não quisesse protegê-lo, diria seu nome. Há um nó aqui que precisa ser desfeito.
Ele estivera falando em voz alta, rapidamente, olhando absorto por cima da cerca do jardim; mas levantou-se bruscamente e se dirigiu para a casa.
– Tenho algumas perguntas a fazer à srta. Cushing.
– Neste caso, vou deixá-lo aqui – disse Lestrade –, porque tenho de cuidar de um outro assunto. Creio que nada mais tenho a ouvir da srta. Cushing. Você me encontrará na delegacia.
– Passaremos por lá quando formos pegar o trem – respondeu Holmes.
Pouco depois Holmes e eu estávamos de volta ao quarto da frente, onde a mulher, impassível, continuava trabalhando. Ela deixou o trabalho no colo quando entramos, e nos observou com os olhos azuis perscrutadores, e francos.
– Tenho certeza, senhor – disse ela –, de que tudo isso é um engano, e que o pacote, na verdade, não se destinava a mim. Já disse isso várias vezes ao cavalheiro da Scotland Yard, mas ele simplesmente ri de mim. Não tenho nem um inimigo no mundo inteiro, pelo que sei. Então, por que alguém iria pregar-me uma peça?
– Também estou chegando à mesma conclusão, srta. Cushing – disse Holmes, sentando-se ao lado dela. – Acho que é mais do que provável...
Ele fez uma pausa e eu fiquei surpreso ao ver que observava, com um interesse especial, o perfil da srta. Cushing. Pude ver, em seu rosto arguto, surpresa e satisfação, embora ele tenha readquirido sua expressão impassível quando ela se virou para ver o motivo de sua pausa. Olhei para os cabelos grisalhos dela, a touca caprichada, os brinquinhos dourados, feições calmas, e nada vi que justificasse a emoção evidente do meu amigo.
– Havia uma ou duas perguntas.
– Oh, estou farta de perguntas! – ela exclamou, impaciente.
– Eu creio que a senhorita tem duas irmãs.
– Como sabe disso?
– Logo que entrei no quarto vi que tem sobre a lareira um retrato de um grupo de três mulheres, uma das quais é a senhorita, sem dúvida, enquanto as outras se parecem muito com a senhorita; assim, não havia dúvida sobre o parentesco.
– O senhor tem razão. Aquelas são minhas irmãs, Sarah e Mary.
– E aqui do meu lado há outro retrato, tirado em Liverpool, de sua irmã mais nova, na companhia de um homem que parece ser um comissário de bordo, pelo uniforme. Vejo que ela era solteira, na época.
– O senhor é um ótimo observador.
– É a minha profissão.
– Bem, o senhor tem razão. Mas ela se casou alguns dias depois com o senhor Browner. Ele estava na linha da América do Sul, mas gostava tanto dela que não conseguia ficar longe por muito tempo; de modo que ele se transferiu para os navios da linha Liverpool e Londres.
– Ah, o Conqueror, talvez?
– Não, o May Day, da última vez que ouvi falar. Uma vez Jim veio me ver. Isso foi antes de quebrar a promessa; depois disso, ele sempre bebia quando estava em terra, um pequeno trago já o deixava completamente louco. Ah, foi um dia fatal quando ele pegou de novo num copo. Primeiro ele se esqueceu de mim, depois brigou com Sarah, e agora que Mary deixou de me escrever, não sei como as coisas estão entre eles.