Читаем Livro do Desassossego полностью

E, daí, talvez isto tudo tivesse outra explicação qualquer, e ele estivesse somente imitando alguém. Ou... Sim, julgo às vezes, considerando a diferença hedionda entre a inteligência das crianças e a estupidez dos adultos, que somos acompanhados na infância por um espírito da guarda, que nos empresta a própria inteligência astral, e que depois, talvez com pena, mas por uma lei alta, nos abandona, como as mães animais às crias crescidas, ao cevado que é o nosso destino.

453.

Do terraço deste café olho tremulamente para a vida. Pouco vejo dela – a espalhada — nesta sua concentração neste largo nítido e meu. Um marasmo, como um começo de bebedeira, elucida-me a alma de coisas. Decorre fora de mim, nos passos dos que passam e na fúria regulada de movimentos, a vida evidente e unânime. Nesta hora dos sentidos estagnarem-me e tudo me parecer outra coisa — as minhas sensações um erro confuso e lúcido, abro asas mas não me movo, como um condor suposto.

Homem de ideais que sou, quem sabe se a minha maior aspiração não é realmente não passar de ocupar este lugar a esta mesa deste café?

Tudo é vão, como mexer em cinzas, vago como o momento em que ainda não é antemanhã.

E a luz bate tão serenamente e perfeitamente nas coisas, doura-as tão de realidade sorridente e triste! Todo o mistério do mundo desce até ante meus olhos se esculpir em banalidade e rua.

Ah, como as coisas quotidianas roçam mistérios por nós! Como à superfície que a luz toca, desta vida complexa de humanos, a Hora, sorriso incerto, sobe aos lábios do Mistério! Que moderno que tudo isto soa! E, no fundo tão antigo, tão oculto, tão tendo outro sentido que aquele que luze em tudo isto!

454.

A leitura dos jornais, sempre penosa do ponto de ver estético, é-o frequentemente também do moral, ainda para quem tenha poucas preocupações morais.

As guerras e as revoluções — há sempre uma ou outra em curso chegam, na leitura dos seus efeitos, a causar não horror mas tédio. Não é a crueldade de todos aqueles mortos e feridos, o sacrifício de todos os que morrem batendo-se, ou são mortos sem que se batam, que pesa duramente na alma: e a estupidez que sacrifica vidas e haveres a qualquer coisa inevitavelmente inútil. Todos os ideais e todas as ambições são um desvairo de comadres homens. Não há império que valha que por ele se parta uma boneca de criança. Não há ideal que mereça o sacrifício de um comboio de lata. Que império é útil ou que ideal profícuo? Tudo é humanidade, e a humanidade é sempre a mesma – variável mas inaperfeiçoável, oscilante mas improgressiva. Perante o curso inimplorável das coisas, a vida que tivemos sem saber como e perderemos sem saber quando, o jogo de dez mil xadrezes que é a vida em comum e luta, o tédio de contemplar sem utilidade o que se não realiza nunca — que pode fazer o sábio senão pedir o repouso, o não ter que pensar em viver, pois basta ter que viver, um pouco de lugar ao sol e ao ar  e ao menos o sonho de que há paz do lado de lá dos montes.

455.

Todos aqueles acasos infelizes da nossa vida, em que fomos, ou ridículos, ou reles, ou atrasados, consideremo-los, à luz da nossa serenidade íntima, como incómodos de viagem. Neste mundo, viajantes, volentes ou involentes, entre nada e nada ou entre tudo e tudo, somos somente passageiros, que não devem dar demasiado vulto aos percalços do percurso, às contundências da trajetória. Consolo-me com isto, não sei se porque me consolo, se porque há nisto que me console. Mas a consolação fictícia torna-se-me verdade se não penso nela.

Depois, há tantas consolações! Há o céu azul alto, limpo e sereno, onde boiam sempre nuvens imperfeitas. Há a brisa leve, que agita os ramos duros das árvores, se é no campo; que faz oscilar as roupas estendidas, nos quartos andares, ou quintos, se é na cidade. Há o calor ou o fresco, se os há, e sempre, no fundo, vêm memórias, com as suas saudades ou sua esperança, e um sorriso de magia à janela do nada, o que desejamos batendo à porta do que somos, como pedintes que são o Cristo.

456.

Há quanto tempo não escrevo! Passei, em dias, séculos de renúncia incerta. Estagnei, como um lago deserto, entre paisagens que não há.

No entretanto, corria-me bem a monotonia variada dos dias, a sucessão nunca igual das horas iguais, a vida. Corria-me bem. Se dormisse, não me correria de outro modo. Estagnei, como um lago que não há, entre paisagens desertas.

É frequente o desconhecer-me — o que sucede com frequência aos que se conhecem. Assisto a mim nos vários disfarces com que sou vivo. Possuo de quanto muda o que é sempre o mesmo, de quanto se faz tudo o que é nada.

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