Quando se quebra uma chávena da minha coleção japonesa, eu sonho que mais do que um descuido das mãos de uma criada tenha sido a causa, ou tenham estado os anseios das figuras que habitam as curvas daquela de louça; a resolução tenebrosa de suicídio que as tomou não me causa espanto: serviram-se da criada, como um de nós de um revólver. Saber isto é estar além da ciência moderna, e com que precisão eu sei isto!
417.
Não conheço prazer como o dos livros, e pouco leio. Os livros são apresentações aos sonhos, e não precisa de apresentações quem, com a facilidade da vida, entre em conversa com eles. Nunca pude ler um livro com entrega a ele; sempre, a cada passo, o comentário da inteligência ou da imaginação me estorvou a sequência da própria narrativa. No fim de minutos, quem escrevia — era eu, e o que estava escrito não estava em parte alguma.
As minhas leituras prediletas são a repetição de livros banais que dormem comigo à minha cabeceira. Há dois que me não deixam nunca – A Retórica do Padre Figueiredo’ e as Reflexões sobre a Língua Portuguesa, do Padre Freire . Estes livros, releio-os sempre a bem; e, se é certo que já os li todos muitas vezes, também é certo que a nenhum deles li em sequência. Devo a esses livros uma disciplina que quase creio impossível em mim — uma regra de escrever objetivado, uma lei da razão de as coisas estarem escritas.
O estilo afetado, claustral, fruste, do Padre Figueiredo é uma disciplina que faz as delícias do meu entendimento. A difusão, quase sempre sem disciplina, do Padre Freire, entretém o meu espírito sem o cansar, e educa-me sem me dar preocupação. São espíritos de eruditos e de sossegados que fazem bem à minha nenhuma disposição para ser como eles, ou como qualquer outra pessoa.
Leio e abandono-me, não à leitura, mas a mim. Leio e adormeço, e é como entre sonhos que sigo a descrição das figuras de retórica do Padre Figueiredo, e por bosques de maravilha que oiço o Padre Freire ensinar que se deve dizer Magdalena, pois Madalena só o diz o vulgo.
418.
Detesto a leitura. Tenho um tédio antecipado das páginas desconhecidas. Sou capaz de ler só o que já conheço. O meu livro de cabeceira é A Retórica do Padre Figueiredo, onde leio todas as noites pela cada vez mais milésima vez a descrição, em estilo de um português conventual e certo, as figuras de retórica, cujos nomes, mil vezes udos, não fixei ainda. Mas embala-me a linguagem e se me faltassem as palavras jesuítas escritas com C dormiria irrequieto.
Devo contudo ao livro do Padre Figueiredo, com o seu exagero de purismo, o relativo escrúpulo que tenho — todo o que posso ter – de escrever a língua em que me registo com a propriedade que…
E leio:
(um trecho do P. Figueiredo)
— pomposo, vazio?, e frio, e isto consola-me de viver.
Ou então (um trecho sobre figuras) que volta no prefácio.
Não exagero uma polegada verbal: sinto tudo isto.
Como outros podem ler trechos da Bíblia, leio-os desta Retórica. Tenho a vantagem do repouso e da falta de devoção.
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Coisas de nada, naturais da vida, insignificâncias do usual e do reles, poeira que sublinha com um traço apagado e grotesco a sordidez e a vileza da minha vida humana — o Caixa aberto diante dos olhos cuja vida sonha com todos os orientes; a piada inofensiva do chefe do escritório que ofende todo o universo; o avisar o patrão que telefone, que é a amiga, por nome e dona, no meio da meditação do período mais insexual de uma tese estética e mental.
Depois os amigos, bons rapazes, bons rapazes, tão agradável estar falando com eles, almoçar com eles, jantar com eles, e tudo, não sei como, tão sórdido, tão reles, tão pequeno, sempre no armazém de fazendas ainda que na rua, sempre diante do livro caixa ainda que no estrangeiro, sempre com o patrão ainda que no infinito.
Todos têm um chefe de escritório com a piada sempre inoportuna e a alma fora do universo no seu conjunto. Todos têm o patrão e a amiga do patrão, e a chamada ao telefone no momento sempre impróprio em que a tarde admirável desce e as amantes inventam desculpas? Ou antes arriscam falar contra o amigo que está tomando chá chic, como os outros sabemos.
Mas todos os que sonham, ainda que não sonhem em escritórios da Baixa, nem diante de uma escrita do armazém de fazendas — todos têm um Caixa diante de si — seja a mulher com quem casaram, seja a administração de um futuro que lhes vem por herança, seja o que for, logo que positivamente seja.
Todos nós, que sonhamos e pensamos, somos ajudantes de guarda-livros num Armazém de fazendas, ou de outra qualquer fazenda, num a Baixa qualquer. Escrituramos e perdemos; somamos e passamos; fechamos o balanço e o saldo invisível é sempre contra nós.
Escrevo sorrindo com as palavras, mas o meu coração está como se se pudesse partir, partir como as coisas que se quebram, em fragmentos, em cacos, em lixo, que o caixote leva num gesto de por cima dos ombros para o carro eterno de todas as Câmaras Municipais.