De modo que tudo o que angustia vejo. E tudo o que alegra não sinto. E reparei que o mal mais se vê que se sente, a alegria mais se sente do que se vê. Porque não pensando, não vendo, certo contentamento adquire-se, como o dos místicos e dos boémios e dos canalhas. Mas tudo afinal entra em casa pela janela da observação e pela porta do pensamento.
413.
Viver do sonho e para o sonho, desmanchando o Universo e recompondo-o, distraidamente confere mais apego ao nosso momento de sonhar. Fazer isto consciente, muito conscientemente, da inutilidade e de o fazer. Ignorar a vida com todo o corpo, perder-se da realidade com todos os sentidos, abdicar do amor com toda a alma. Encher de areia vã os cântaros da nossa ida à fonte e despejá-los para os tornar a encher e despejar, futilissimamente.
Tecer grinaldas para, logo que acabadas, as desmanchar totalmente e minuciosamente.
Pegar em tintas e misturá-las na paleta sem tela ante nós onde pintar. Mandar vir pedra para burilar sem ter buril nem ser escultor. Fazer de tudo um absurdo e requintar para fúteis todas as nossas estéreis horas . Jogar às escondidas com a nossa consciência de viver.
Ouvir as horas dizer-nos que existimos com um sorriso deliciado e incrédulo. Ver o Tempo pintar o mundo e achar o quadro não só falso mas vão .
Pensar em frases que se contradigam, falando alto em sons que não são sons e cores que não são cores. Dizer — e compreendê-lo, o que é aliás impossível — que temos consciência de não ter consciência, e que não somos o que somos. Explicar isto tudo por um sentido oculto e paradoxo que as coisas tenham no seu aspeto outro-lado e divino, e não acreditar demasiado na explicação para que não hajamos de a abandonar.
Esculpir em silêncio nulo todos os nossos sonhos de falar. Estagnar em torpor todos os nossos pensamentos de ação.
E sobre tudo isto, como um céu uno e azul, o horror de viver paira alheadamente.
414.
Mas as paisagens sonhadas são apenas fumos de paisagens conhecidas e o tédio de as sonhar também é quase tão grande como o tédio de olharmos para o mundo.
415.
As figuras imaginárias têm mais relevo e verdade que as reais.
O meu mundo imaginário foi sempre o único mundo verdadeiro para mim. Nunca tive amores tão reais, tão cheios de verve, de sangue e de vida como os que tive com figuras que eu próprio criei. Que leais! Tenho saudades deles porque, como os outros, passam...
416.
Às vezes, nos meus diálogos comigo, nas tardes requintadas da Imaginação, em colóquios cansados em crepúsculos de salões supostos, pergunto-me, naqueles intervalos da conversa em que fico a sós com um interlocutor mais eu do que os outros, porque razão verdadeira não haverá a nossa época científica estendido a sua vontade de compreender até aos assuntos que são artificiais. E uma das perguntas em que com mais languidez me demoro é a porque se não faz, a par da psicologia usual das criaturas humanas e sub-humanas, uma psicologia também – que a deve haver — das figuras artificiais e das criaturas cuja existência se passa apenas nos tapetes e nos quadros. Triste noção tem da realidade quem a limita ao orgânico, e não põe a ideia de uma alma dentro das estatuetas e dos lavores. Onde há forma há alma.
Não são uma ociosidade estas minhas considerações comigo, mas uma elucubração científica como qualquer outra que o seja. Por isso, antes de e sem ter uma resposta, suponho o possível atual e entrego-me, em análises interiores, à visão imaginada de aspetos possíveis deste clesia’eratum realizado. Mal nisso penso, logo dentro da visão do meu espírito surgem cientistas curvados sobre estampas, sabendo bem que elas são vidas; microscopistas da tessitura surgem dos tapetes; fisicistas do seu desenho largo e bruxuleante nos contornos; químicos, sim, da ideia das formas e das cores nos quadros; geologistas das camadas estráticas dos camafeus; psicólogos, enfim — e isto mais importa — que uma a uma notam e congregam as sensações que deve sentir uma estatueta, as ideias que devem passar pelo psiquismo estreito de uma figura de quadro ou de vitral, os impulsos loucos, as paixões sem freio, as compaixões e ódios ocasionais e que têm nesses universos especiais de fixidezes e morte nos gestos eternos dos baixos-relevos, nos universos mortos dos figurantes das telas.
Mais do que outras artes, são a literatura e a música propícias às subtilezas de um psicólogo. As figuras de romance são — como todos sabem — tão reais como qualquer de nós. Certos aspetos de sons têm uma alma alada e rápida, mas suscetíveis de psicologia e sociologia. Porque — bom é que os ignorantes o saibam — as sociedades existem dentro das cores, dos sons, das frases, e há regimes e revoluções, reinados, políticas e — há-os em absoluto e sem metafísica — no conjunto instrumental das sinfonias, no todo organizado das novelas, nos metros quadrados de um quadro complexo, onde gozam, sofrem, e misturam as atitudes coloridas de guerreiros, de amorosos ou de simbólicos.