Читаем Livro do Desassossego полностью

Que fazer? Isolar o momento como uma coisa e ser feliz agora, no momento em que se sente a felicidade, sem pensar senão no que se sente, excluindo o mais, excluindo tudo. Enjaular o pensamento na sensação, é esta a minha crença, esta tarde. Amanhã de manhã não será esta, porque amanhã de manhã serei já outro. Que crente serei amanhã? Não sei, porque era preciso estar já lá para o saber. Nem o Deus eterno em que hoje creio o saberá amanhã nem hoje, porque hoje sou eu e amanhã ele talvez já não tenha nunca existido.

407.

Deus criou-me para criança, e deixou-me sempre criança. Mas porque deixou que a Vida me batesse e me tirasse os brinquedos, e me deixasse só no recreio, amarrotando com mãos tão fracas o bibe azul sujo de lágrimas compridas? Se eu não poderia viver senão acarinhado, porque deitaram fora’ o meu carinho? Ah, cada vez que vejo nas ruas uma criança a chorar, uma criança exilada dos outros, dói-me mais que a tristeza da criança o horror desprevenido do meu coração exausto. Doo-me com toda a estatura da vida sentida, e são minhas as mãos que torcem o canto do bibe, são minhas as bocas tortas das lágrimas verdadeiras, é minha a fraqueza, é minha a solidão, e os risos da vida adulta que passa usam-me como luzes de fósforos riscados no estofo sensível  do meu coração.

408.

Cantava, num a voz muito suave, uma canção de país longínquo. A música tornava familiares as palavras incógnitas. Parecia o fado para a alma, mas não tinha com ele semelhança alguma.

A canção dizia, pelas palavras veladas e a melodia humana, coisas que estão na alma de todos e que ninguém conhece. Ele cantava numa espécie de sonolência, ignorando com o olhar os ouvintes, num pequeno êxtase de rua.

O povo reunido ouvia-o sem grande motejo visível. A canção era de toda a gente, e as palavras falavam às vezes connosco, segredo oriental de qualquer raça perdida. O ruído da cidade não se ouvia se o ouvíamos, e passavam as carroças tão perto que uma me roçou pelo solto do casaco. Mas senti-a e não a ouvi. Havia uma absorção no canto do desconhecido que fazia bem ao que em nós sonha ou não consegue. Era um caso de rua, e todos reparámos que o polícia virara a esquina lentamente. Aproximou-se com a mesma lentidão. Ficou parado um tempo por trás do rapaz dos guarda-chuvas, como quem vê qualquer coisa. Nesta altura o cantor parou.

Ninguém disse nada. Então o polícia interveio.

409.

Não sei porquê — noto-o subitamente — estou sozinho no escritório. Já, indefinidamente, o pressentira. Havia em qualquer aspeto da minha consciência de mim uma amplitude de alívio, um respirar mais fundo de pulmões diversos.

É esta uma das mais curiosas sensações que nos pode ser dada pelo acaso dos encontros e das faltas: a de estarmos sós numa casa ordinariamente cheia, ruidosa ou alheia . Temos, de repente, uma sensação de posse absoluta, de domínio fácil e largo, de amplitude — como disse de alívio e sossego.

Que bom estar só largamente! Poder falar alto connosco, passear sem estorvo de vistas, repousar para trás num devaneio sem chamamento! Toda casa se torna um campo, toda sala tem a extensão de uma quinta.

Os ruídos são todos alheios, como se pertencessem a um universo próximo mas independente. Somos, finalmente, reis. A isso todos aspiramos, enfim, e os mais plebeus de nós — quem sabe — com maior vigor que os de mais ouro falso. Por um momento somos pensionistas do universo, e vivemos, regulares do soldo dado, sem necessidades nem preocupações.

Ah, mas reconheço, naquele passo na escada, subindo até mim não sei quem, o alguém que vai interromper a minha solidão espairecida. Vai ser invadido pelos bárbaros o meu império implícito. Não é que o passo me diga quem é que vem, nem que me lembre o passo deste ou daquele que eu conheça. Há um mais surdo instinto na alma que me faz saber que é para aqui que vem o que sobe, por enquanto só passos, na escada que subitamente vejo, porque penso nele que a sobe. Sim, é um dos empregados. Pára, a porta ouve-se, entra. Vejo-o todo. E diz-me, ao entrar: "Sozinho, Sr. Soares?" E eu respondo: "Sim, já há tempo... " E ele então diz, descascando-se do casaco com o olhar no outro, o velho, no cabide: "Grande maçada a gente estar aqui só, Sr. Soares, e para além do mais..." "Grande maçada, não há dúvida", respondo eu. "Até dá vontade de dormir", diz ele, já de casaco roto, e encaminhando-se para a secretária. "E dá", confirmo, sorridente. Depois, estendendo a mão para a caneta esquecida, reentro, gráfico na saúde anónima da vida normal.

410.

Sempre que podem, sentam-se em frente do espelho. Falam connosco e namoram-se de olhos a si mesmos. Por vezes, como nos namoros distraem-se da conversa. Fui-lhes sempre simpático, porque a minha aversão adulta pelo meu aspeto me compeliu sempre a escolher o espelho como coisa para onde virasse as costas. Assim, e eles de instinto o reconheciam tratando-me sempre bem, eu era o rapaz escutador que lhes deixava sempre livres a vaidade e a tribuna.

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