Читаем Livro do Desassossego полностью

Escrevo isto sob a opressão de um tédio que parece não caber em mim, ou precisar de mais que da minha alma para ter onde estar; de uma opressão de todos e de tudo que me estrangula e desvaira; de um sentimento físico da incompreensão alheia que me perturba e esmaga. Mas ergo a cabeça para o céu azul alheio, exponho a face ao vento inconscientemente fresco, baixo as pálpebras depois de ter visto, esqueço a face depois de ter sentido. Não fico melhor, mas fico diferente. Ver-me liberta-me de mim. Quase sorrio, não porque me compreenda, mas porque, tendo-me tornado outro, me deixei de poder compreender. No alto do céu, como um nada visível, uma nuvem pequeníssima é um esquecimento branco do universo inteiro.

427.

O meus sonhos: como me crio amigos ao sonhar ando com eles. A sua imperfeição outra.

Ser puro, não para ser nobre, ou para ser forte, mas para ser si próprio. Quem dá amor, perde amor.

Abdicar da vida para não abdicar de si próprio.

A mulher — uma boa fonte de sonhos. Nunca lhe toques.

Aprende a desligar as ideias de voluptuosidade e de prazer. Aprende a gozar em tudo, não o que ele é, mas as ideias e os sonhos que provoca. (Porque nada é o que é, e os sonhos sempre são os sonhos.) Para isso precisas não tocar em nada. Se tocares, o teu sonho morrerá, o objeto tocado ocupará a tua sensação.

Ver e ouvir são as únicas coisas nobres que a vida contém. Os outros sentidos são plebeus e carnais. A única aristocracia é nunca tocar. Não se aproximar — eis o que é fidalgo.

Deus é bom mas o diabo também não é mau.

Apesar de tudo, o equilíbrio romântico é mais perfeito que o do século XVII em França.

428.

Estética da indiferença

Perante cada coisa o que o sonhador deve procurar sentir é a nítida indiferença que ela, no que coisa, lhe causa.

Saber, com um imediato instinto, abstrair de cada objeto ou acontecimento o que ele pode ter de sonhável, deixando morto no Mundo Exterior tudo quanto ele tem de real — eis o que o sábio deve procurar realizar em si próprio.

Nunca sentir sinceramente os seus próprios sentimentos, e elevar o seu pálido triunfo ao ponto de olhar indiferentemente para as suas próprias ambições, ânsias e desejos; passar pelas suas alegrias e angústias como quem passa por quem  não lhe interessa.

O maior domínio de si próprio é a indiferença por si próprio, tendo-se, alma e corpo, por a casa e a quinta onde o Destino quis que passássemos a nossa vida.

Tratar os seus próprios sonhos e íntimos desejos altivamente, en grand seigneue, pondo uma íntima delicadeza em não reparar neles. Ter o pudor de si próprio; perceber que na nossa presença não estamos sós, que somos testemunhas de nós mesmos, e que por isso importa agir perante nós mesmos como perante um estranho, com uma estudada e serena linha exterior, indiferente porque fidalga, e fria porque indiferente.

Para não descermos aos nossos próprios olhos, basta que nos habituemos a não ter nem ambições nem paixões, nem desejos nem esperanças, nem impulsos nem desassossegos. Para conseguir isto lembremo-nos sempre que estamos sempre em presença nossa, que nunca estamos sós, para que possamos estar à vontade. E assim dominaremos o ter paixões e ambições, porque paixões e ambições são desescudarmo-nos; não teremos desejos nem esperanças, porque desejos e esperanças são gestos baixos e deselegantes; nem teremos impulsos e desassossegos porque a precipitação é uma indelicadeza para com os olhos dos outros, e a impaciência é sempre uma grosseria.

O aristocrata é aquele que nunca esquece que nunca está só; por isso as praxes e os protocolos são apanágio das aristocracias. Interiorizemos o aristocrata. Arranquemo-lo aos salões e aos jardins passando-o para a nossa alma  e para a nossa consciência de existirmos. Estejamos sempre diante de nós em protocolos e praxes, em gestos estudados e para-os-outros.

Cada um de nós é uma sociedade inteira, um bairro todos do Mistério convém que ao menos tornemos elegante e distinta a vida desse bairro, que nas festas das nossas sensações haja requinte e recato, e porque sóbria a cortesia nos banquetes dos nossos pensamentos. Em torno a nós poderão as outras almas erguerem-se os seus bairros sujos e pobres; marquemos nitidamente onde o nosso acaba e começa, e que desde a frontaria dos nossos prédios até às alcovas das nossas timidezes, tudo seja fidalgo e sereno, esculpido numa sobriedade  ou surdina de exibição.

Saber encontrar a cada sensação o modo sereno de ela se realizar. Fazer o amor resumir-se apenas a uma sombra de ser sonho de amor, pálido e trémulo intervalo entre os cimos de duas pequenas ondas onde o luar bate. Tornar o desejo uma coisa inútil e inofensiva, no como que sorriso delicado da alma a sós consigo própria; fazer dela uma coisa que nunca pense em realizar-se nem em dizer-se. Ao ódio adormecê-lo como a uma serpente prisioneira, e dizer ao medo que dos seus gestos guarde apenas a agonia no olhar, e no olhar da nossa alma, única atitude compatível com ser estética.

429.

Перейти на страницу:
Нет соединения с сервером, попробуйте зайти чуть позже