Cada um de nós é vários, é muitos, é uma prolixidade de si mesmos. Por isso aquele que despreza o ambiente não é o mesmo que dele se alegra ou padece. Na vasta colónia do nosso ser há gente de muitas espécies, pensando e sentindo diferentemente. Neste mesmo momento, em que escrevo, num intervalo legítimo do trabalho hoje escasso, estas poucas palavras de impressão, sou o que as escreve atentamente, sou o que está contente de não ter nesta hora de trabalhar, sou o que está vendo o céu lá fora, invisível de aqui, sou o que esta pensando isto tudo, sou o que sente o corpo contente e as mãos ainda vaga- mente frias. E todo este mundo meu de gente entre si alheia projeta, como uma multidão diversa mas compacta, uma sombra única — este corpo quieto e escrevente com que reclino, de pé, contra a secretária alta do Borges onde vim buscar o meu mata-borrão, que lhe emprestara.
397.
Por entre a casaria, em intercalações de luz e sombra — ou antes, de luz e de menos luz -, a manhã desata-se sobre a cidade. Parece que não vem do sol mas da cidade, e que é dos muros e dos telhados que a luz do alto se desprende — não deles fisicamente, mas deles por estarem ali.
Sinto, ao senti-la, uma grande esperança; mas reconheço que a esperança e literária. Manhã, primavera, esperança — estão ligadas em música pela mesma intenção melódica; estão ligadas na alma pela mesma memória de uma igual intenção. Não: se a mim mesmo observo, como observo à cidade, reconheço que o que tenho que esperar é que este dia acabe, como todos os dias. A razão também vê a aurora. A esperança que pus nela, se a houve, não foi minha; foi a dos homens que vivem a hora que passa, e a quem encarnei, sem querer, o entendimento exterior neste momento.
Esperar? Que tenho eu que espere? O dia não me promete mais que o dia, e eu sei que ele tem decurso e fim. A luz anima-me mas não me melhora, que sairei de aqui como para aqui vim — mais velho em horas, mais alegre uma sensação, mais triste um pensamento. No que nasce tanto podemos sentir o que nasce como pensar o que há de morrer. Agora, à luz ampla e alta, a paisagem da cidade é como de um campo de casas — é natural, é extensa, é combinada. Mas, ainda no ver disto tudo, poderei eu esquecer que existo?
A minha consciência da cidade é, por dentro, a minha consciência de mim.
Lembro-me de repente de quando era criança, e via, como hoje não posso ver, a manhã raiar sobre a cidade. Ela então não raiava para mim, mas para a vida, porque então eu (não sendo consciente) era a vida. Via a manhã e tinha alegria; hoje vejo a manhã, e tenho alegria, e fico triste... A criança ficou mas emudeceu. Vejo como via, mas por detrás dos olhos vejo-me vendo; e só com isto se me obscurece o sol e o verde das árvores é velho e as flores murcham antes de aparecidas. Sim, outrora eu era de aqui; hoje, a cada paisagem, nova para mim que seja, regresso estrangeiro, hóspede e peregrino da sua presentação, forasteiro do que vejo e ouço, velho de mim.
Já vi tudo, ainda o que nunca vi, nem o que nunca verei. No meu sangue corre até a menor das paisagens futuras, e a angústia do que terei que ver de novo é uma monotonia antecipada para mim.
E debruçado ao parapeito, gozando do dia, sobre o volume vário da cidade inteira, só um pensamento me enche a alma — a vontade íntima de morrer, de acabar, de não ver mais luz sobre cidade alguma, de não pensar, de não sentir, de deixar atrás, como um papel de embrulho, o curso do sol e dos dias, de despir, como um traje pesado, à beira do grande leito, o esforço involuntário de ser.
398.
Tenho por intuição que para as criaturas como eu nenhuma circunstância material pode ser propícia, nenhum caso da vida ter uma solução favorável. Se já por outras razões me afasto da vida, esta contribui também para que eu me afaste. Aquelas somas de factos que, para os homens vulgares, inevitabilizariam o êxito, têm, quando me dizem respeito, um outro resultado qualquer, inesperado e adverso.
Nasce-me, às vezes, desta constatação, uma impressão dolorosa de inimizade divina. Parece-me que só por um ajeitar consciente dos factos, de modo a que me sejam maléficos, a série de desastres, que define a minha vida, me poderia ter acontecido.
Resulta de tudo isto para o meu esforço que eu não intento nunca demasiadamente. A sorte, se quiser, que venha ter comigo. Sei de sobra que o meu maior esforço não logra o conseguimento que noutros teria. Por isso me abandono à sorte, sem esperar muito dela. Para quê? O meu estoicismo é uma necessidade orgânica. Preciso de me couraçar contra a vida. Como todo o estoicismo não passa de um epicurismo severo, desejo, quanto possível, fazer que a minha desgraça me divirta. Não sei até que ponto o consigo. Não sei até que ponto consigo qualquer coisa. Não sei até que ponto qualquer coisa se pode conseguir...
Onde um outro venceria, não pelo seu esforço, mas por uma inevitabilidade das coisas, eu nem por essa inevitabilidade, nem por esse esforço, venço ou venceria.