— Não me peça desculpas, não repare em que estamos falando... Toda a boa conversa deve ser um monólogo de dois... Devemos, no fim, não poder ter a certeza se conversámos realmente com alguém ou se imaginámos totalmente a conversa... As melhores e as mais íntimas conversas, e sobretudo as menos moralmente instrutivas, são aquelas que os romancistas têm entre duas personagens das suas novelas... Como exemplo...
— Por amor de Deus! Não ia decerto citar-me um exemplo... Isso só se faz nas gramáticas; não sei se se recorda que até nunca as lemos.
— Leu alguma vez uma gramática?
— Eu nunca. Tive sempre uma aversão profunda a saber como se dizem as coisas... A minha única simpatia, nas gramáticas, ia para as exceções e para os pleonasmos... Escapar às regras e dizer coisas inúteis resume bem a atitude essencialmente moderna... Não é assim que se diz?...
— Absolutamente... O que tem de antipático nas gramáticas (já reparou na deliciosa impossibilidade de estarmos falando neste assunto?) — o que há de mais antipático nas gramáticas é o verbo, os verbos... São as palavras que dão sentido às frases... Uma frase honesta deve sempre poder ter vários sentidos... Os verbos!... Um amigo meu que se suicidou — cada vez que tenho uma conversa um pouco longa suicido um amigo — tinha tencionado dedicar toda a sua vida a destruir os verbos...
— Ele porque se suicidou?
— Espere, ainda não sei... Ele pretendia descobrir e fixar o modo de não completar as frases sem parecer fazê-lo. Ele costumava dizer-me que procurava o micróbio da significação... Suicidou-se, é claro, porque um dia reparou na responsabilidade imensa que tomara sobre si... A importância do problema deu-lhe cabo do cérebro... Um revólver e...
— Ah, não... Isso de modo algum... Não vê que não podia ser um revólver?... Um homem desses nunca dá um tiro na cabeça... O senhor pouco se entende com os amigos que nunca teve... É um defeito grande, sabe?... A minha melhor amiga — uma deliciosa rapaz que eu inventei -
— Dão-se bem?
— Tanto quanto é possível... Mas essa rapariga, não imagina,
As duas criaturas que estavam à mesa de chá não tiveram com certeza esta conversa. Mas estavam tão alinhadas e bem vestidas que era pena que não falassem assim... Por isso escrevi esta conversa para elas a terem tido... As suas atitudes, os seus pequenos gestos, as suas criancices de olhares e sorrisos, momentos de conversa que ambos entendemos no sentimento de existirmos, disseram nitidamente o que falsamente finjo que reporto... Quando eles um dia forem ambos e sem dúvida casados cada um para seu lado — em intentos de mais juntos, para poderem casar um com o outro -, se eles por acaso olharem para estas páginas, acredito que reconhecerão o que nunca disseram e que não deixarão de me ser gratos por eu ter interpretado tão bem, não só o que eles são realmente, mas o que eles nunca desejaram ser nem sabiam que eram...
Eles, se me lerem, acreditem que foi isto que realmente disseram. Na conversa aparente que eles escutaram um ao outro faltavam tantas coisas que — faltou o perfume da hora, o aroma do chá, a significação para o caso do ramo de que ela tinha ao peito... Tudo isso, que assim formou parte da conversa, eles se esqueceram de dizer... Mas tudo isto lá estava e o que eu faço é, mais do que um trabalho literário, um trabalho de historiador. Reconstruo, completando... E isso me servirá de desculpa junto deles, de ter estado tão fixamente a escutar-lhes o que diziam e não queriam dizer.
371.
Apoteose do absurdo
Falo a sério e tristemente; este assunto não é para alegria, porque as alegrias do sonho são contraditórias e entristecidas e por isso aprazíveis de uma misteriosa maneira especial.
Sigo às vezes em mim, imparcialmente, essas coisas deliciosas e absurdas que eu não posso poder ver, porque são ilógicas à vista — pontes sem donde nem para onde, estradas sem princípio nem fim, paisagens invertidas — o absurdo, o ilógico, o contraditório, tudo quanto nos desliga e afasta do real e do seu séquito disforme de pensamentos práticos e sentimentos humanos e desejos de ação útil e profícua. O absurdo salva de chegar apesar de tédio aquele estado de alma que começa por se sentir a doce fúria de sonhar.
E eu chego a ter não sei que misterioso modo de visionar esses absurdos — não sei explicar, mas eu vejo essas coisas inconcebíveis à visão .
372.
Apoteose do absurdo
Absurdemos a vida, de leste a oeste.
373.
A vida é uma viagem experimental, feita involuntariamente. É uma viagem do espírito através da matéria, e como é o espírito que viaja, é nele que se vive. Há, por isso, almas contemplativas que têm vivido mais intensa, mais extensa, mais tumultuariamente do que outras que têm vivido externas. O resultado é tudo. O que se sentiu foi o que se viveu. Recolhe-se tão cansado de um sonho como de um trabalho visível. Nunca se viveu tanto como quando se pensou muito.