Читаем Livro do Desassossego полностью

O aspeto físico é de um comerciante cansado. A cara tem traços de fadiga, mas tanto poderiam ser de pensar de mais como de não viver higienicamente. Os gestos são quaisquer. O olhar tem uma certa viveza — privilégio de quem não é míope. A voz é um pouco embrulhada, como se os inícios da paralisia geral estragassem essa emissão da alma. E a alma emitida discursa sobre a política de partidos, sobre a desvalorização do escudo, e sobre o que há de reles nos colegas da grandeza.

Se eu não soubesse quem ele é, não o conheceria pela estampa. Sei bem que não há que fazer dos grandes homens aquela ideia heroica que as almas simples formam: que um grande poeta há de ser um Apoio de corpo e um Napoleão de expressão; ou, com menos exigências, um homem de distinção e um rosto expressivo. Sei bem que estas coisas são humanidades naturais e absurdas. Mas, se não se espera tudo ou quase tudo, espera-se todavia alguma coisa. E, quando se passa da figura vista para a alma falada, não há sem dúvida que esperar espírito ou vivacidade, mas há ao menos que contar com inteligência, com, ao menos, a sombra da elevação.

Tudo isto — estas desilusões humanas — nos faz pensar no que pode realmente haver de verdade no conceito vulgar de inspiração. Parece que este corpo destinado a comerciante e esta alma destinada a homem educado são, quando estão a sós, investidos misteriosamente de qualquer coisa interior que lhes é externa, e que não falam, senão que se fala neles, e a voz diz o que fora mentira que eles dissessem.

São especulações casuais e inúteis. Chego a ter pena de as ter. Não diminui com elas a valia do homem; não aumenta com elas a expressão do seu corpo. Mas, na verdade, nada altera nada, e o que dizemos ou fazemos roça só os cimos dos montes, em cujos vales dormem as coisas.

359.

Ninguém compreende outro. Somos, como disse o poeta, ilhas no mar da vida; corre entre nós o mar que nos define e separa. Por mais que uma alma se esforce por saber o que é outra alma, não saberá senão o que lhe diga uma palavra — sombra disforme no chão do seu entendimento.

Amo as expressões porque não sei nada do que exprimem. Sou como o mestre de Santa Marta: contento-me com o que me é dado. Vejo, e já é muito. Quem é capaz de entender?

Talvez seja por este ceticismo do inteligível que eu encaro de igual modo uma árvore e uma cara, um cartaz e um sorriso. (Tudo é natural, tudo artificial, tudo igual.) Tudo o que vejo é para mim o só visível, seja o céu alto azul de verde branco da manhã que há de vir, seja o esgar falso em que se contrai o rosto de quem está a sofrer perante testemunhas a morte de quem ama.

Bonecos, ilustrações, páginas que existem e se voltam. O meu coração não está neles nem quase minha atenção, que os percorre de fora, como uma mosca por um papel.

Sei eu sequer se sinto, se penso, se existo? Nada: só um esquema objetivo de cores, de formas, de expressões de que sou o espelho oscilante por vender inútil.

360.

Comparados com os homens simples e autênticos, que passam pelas ruas da vida, com um destino natural e calhado, essas figuras dos cafés assumem um aspeto que não sei definir senão comparando-as a certos duendes de sonhos — figuras que não são de pesadelo nem de mágoa, mas cuja recordação, quando acordamos, nos deixa, sem que saibamos porquê, um sabor a um nojo passado, um desgosto de qualquer coisa que está com eles mas que se não pode definir como sendo deles.

Vejo os vultos dos génios e dos vencedores reais, mesmo pequenos, singrar na noite das coisas sem saber o que cortam as suas proas altivas, nesse’ mar de sargaço de palha de embalagem  e aparas de cortiça.

Ali se resume tudo, como no chão do saguão do prédio do escritório, que, visto através das grades da janela do armazém, parece uma cela para prender lixo.

361.

A procura da verdade — seja a verdade subjetiva do convencimento, a objetiva da realidade, ou a social do dinheiro ou do poder – traz sempre consigo, se nela se emprega quem merece prémio, o conhecimento último da sua inexistência. A sorte grande da vida sai somente aos que compraram por acaso.

A arte tem valia porque nos tira de aqui.

362.

É legitima toda a violação da lei moral que é feita em obediência a uma lei moral superior. Não é desculpável roubar um pão por ter fome. É desculpável a um artista roubar dez contos para garantir por dois anos a sua vida e tranquilidade, desde que a sua obra tenda a um fim civilizacional; se é uma mera obra estética, não vale o argumento.

363.

Nós não podemos amar, filho. O amor é a mais carnal das ilusões. Amar é possuir, escuta. E o que possui quem ama? O corpo? Para o possuir seria preciso tornar nossa a sua matéria, comê-lo, incluí-lo em nós... E essa impossibilidade seria temporária, porque o nosso próprio corpo passa e se transforma, porque nós não possuímos o nosso corpo (possuímos apenas a nossa sensação dele), e porque, uma vez possuído esse corpo amado, tornar-se-ia nosso, deixaria de ser outro, e o amor, por isso, com o desaparecimento do outro ente, desapareceria...

Перейти на страницу:
Нет соединения с сервером, попробуйте зайти чуть позже