Deliciosa psicologia das coisas deveras estáticas! A eternidade tece-a e o gesto que uma figura pintada tem desdenha, do alto da sua eternidade visível, a nossa transitória febre, que nunca se fixa numa atitude nem se demora’ nos portões de um esgar .
Que curioso deve ser o folclore do colorido povo dos painéis! Os amores das figuras bordadas — amores de duas dimensões, de uma castidade geométrica — devem ser para entretenimento dos psicólogos ouvidos.
Não amamos, senão que fingimos amar. O verdadeiro amor, o imortal e inútil, pertence àquelas figuras em que a mudança não entra, pela sua natureza de estáticas. Desde que eu o conheço, o japonês que se senta na convexa do meu bule não mudou ainda... Não saboreou nunca as mãos da mulher que está a um distar errado dele. Um colorido extinto como de um sol despejado, entornado, irrealiza eternamente as encostas desse monte. E tudo aquilo obedece a um instante de pena — pena mais fiel do que esta que inutilmente preenchesse a fragilidade das minhas horas exaustas.
369.
Nesta era metálica dos bárbaros só um culto metodicamente excessivo das nossas faculdades de sonhar, de analisar e de atrair pode servir de salvaguarda à nossa personalidade, para que se não desfaça ou para nula ou para idêntica às outras.
O que as nossas sensações têm de real é precisamente o que têm de não nossas. O que há de comum nas sensações é que forma a realidade. Por isso a nossa individualidade nas nossas sensações está só na parte enorme delas. A alegria que eu teria se visse um dia o sol escarlate. Seria tão meu aquele sol, só meu!
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Nunca deixo saber aos meus sentimentos o que lhes vou fazer sentir... Brinco com as minhas sensações como uma princesa cheia de tédio com os seus grandes gatos prontos e cruéis...
Fecho subitamente portas dentro de mim, por onde certas sensações iam passar para se realizarem. Retiro bruscamente do seu caminho os objetos espirituais que lhes vão vincar certos gestos.
Pequenas frases sem sentido, metidas nas conversas que supomos estar tendo; afirmações absurdas feitas com cinzas de outras que já de si não significam nada...
— O seu olhar tem qualquer coisa de música tocada a bordo de um barco, no meio misterioso de um rio com florestas na margem oposta...
— Não diga que é fria uma noite de luar. Abomino as noites de luar... Há quem costume realmente tocar música nas noites de luar... — Isso também é possível... E é lamentável, está claro... Mas o seu olhar tem realmente o desejo de ser saudoso de qualquer coisa... Falta-lhe o sentimento que exprime... Acho na falsidade da sua expressão uma quantidade de ilusões que tenho tido...
— Creia que sinto às vezes o que digo, e até, apesar de mulher, o que digo com o olhar...
— Não está sendo cruel para consigo própria? Nós sentimos realmente o que pensamos que estamos sentindo? Esta nossa conversa, por exemplo, tem visos de realidade? Não tem. Num romance não seria admitida.
— Com muita razão... Eu não tenho a absoluta certeza de estar falando consigo, repare... Apesar de mulher, criei-me um dever de ser estampa de um livro de impressões de um desenhista doido... Tenho em mim detalhes exageradamente nítidos... Dá um pouco, bem sei, a impressão de realidade excessiva e um pouco forçada... Acho que a única coisa digna de uma mulher contemporânea é este ideal de ser estampa. Quando eu era criança queria ser a rainha de um naipe qualquer num baralho de cartas antigo que havia na minha casa... Achava esse mister de uma heráldica realmente compassiva... Mas quando se é criança, tem-se aspirações morais destas... Só depois, na idade em que as nossas aspirações são todas imorais, é que pensamos nisso a serto...
— Eu, como nunca falo a crianças, creio no instinto artista delas... Sabe, enquanto estou falando, agora mesmo, eu estou querendo penetrar o íntimo sentido dessas coisas que me estava dizendo... Perdoa-me?
— Não de todo... Nunca se deve devassar os sentimentos que os outros fingem que têm. São sempre demasiadamente íntimos... Acredite que me dói realmente estar-lhe estas confidências íntimas, que, se bem que todas elas falsas, representam verdadeiros farrapos da minha pobre alma... No fundo, acredite, o que somos de mais doloroso é o que não somos realmente, e as nossas maiores tragédias passam-se na nossa ideia de nós .
— Isso é tão verdadeiro... Para que dizê-lo? Feriu-me. Para que tirar à nossa conversa a sua irrealidade constante? Assim é quase uma conversa possível, passada a uma mesa de chá, entre uma mulher linda e um imaginador de sensações.
— Sim, sim... É a minha vez de pedir perdão... Mas olhe que eu estava distraída e não reparei realmente em que tinha dito uma coisa justa... Mudemos de assunto... Que tarde que é sempre!... Não se torne a zangar... Olhe que esta minha frase não tem sentido absolutamente nenhum...