Читаем Livro do Desassossego полностью

Há qualquer coisa de longínquo em mim neste momento. Estou de facto à varanda da vida, mas não é bem desta vida. Estou por sobre ela, e vendo-a de onde vejo. Jaz diante de mim, descendo em socalcos e resvalamentos, como uma paisagem diversa, até aos fumos sobre casas brancas das aldeias do vale. Se cerrar os olhos, continuo vendo, pois que não vejo. Se os abrir nada mais vejo, pois que não via. Sou todo eu uma vaga saudade, nem do passado, nem do futuro: sou uma saudade do presente, anónima, prolixa e incompreendida.

378.

Os classificadores de coisas, que são aqueles homens de ciência cuja ciência é só classificar, ignoram, em geral, que o classificável é infinito e portanto se não pode classificar. Mas o em que vai meu pasmo é que ignorem a existência de classificáveis incógnitos, coisas da alma e da consciência que estão nos interstícios do conhecimento.

Talvez porque eu pense de mais ou sonhe de mais, o certo é que não distingo entre a realidade que existe e o sonho, que é a realidade que não existe. E assim intercalo nas minhas meditações do céu e da terra coisas que não brilham de sol ou se pisam com pés — maravilhas fluidas da imaginação.

Douro-me de poentes supostos, mas o suposto é vivo na suposição. Alegro-me de brisas imaginárias, mas o imaginário vive quando se imagina. Tenho alma por hipóteses várias, mas essas hipóteses têm alma própria, e me dão portanto a que têm.

Não há problema senão o da realidade, e esse é insolúvel e vivo. Que sei eu da diferença entre uma árvore e um sonho? Posso tocar na árvore; sei que tenho o sonho. Que é isto, na sua verdade?

Que é isto? Sou eu que, sozinho no escritório deserto, posso viver imaginando sem desvantagem da inteligência. Não sofro interrupção de pensar das carteiras abandonadas e da secção de remessas só com papel e cordéis em rolos. Estou, não no meu banco alto, mas recostado, por uma promoção por fazer, na cadeira de braços redondos do Moreira. Talvez seja a influência do lugar que me unge de distraído. Os dias de grande calor fazem sono; durmo sem dormir por falta de energia. E por isso penso assim.

379.

Intervalo doloroso

Já me cansa a rua, mas não, não me cansa — tudo é rua na vida. Há a taberna em frente, que vejo se olho por cima do ombro direito; e há o convento em frente, que vejo se olho por cima do ombro esquerdo; e, no meio, que não verei se me não voltar de todo, o sapateiro enche de som regular o portão do escritório da Companhia Africana. Os outros andares são indeterminados. No terceiro andar há uma pensão, dizem que imoral, mas isso é como tudo, a vida.

Cansar-me a rua? Canso-me só quando penso. Quando olho a rua, ou a sinto, não penso: trabalho com um grande repouso íntimo, último naquele canto, escriturantemente ninguém. Não tenho alma, ninguém tem alma — tudo é trabalho na casa larga. Onde os milionários gozam, sempre no estrangeiro deles, também há trabalho, e também não há alma. Fica de tudo um ou outro poeta. Quem me dera que de mim ficasse uma frase, uma coisa dita de que se dissesse, Bem feito!, como os números que vou inscrevendo, copiando-os, no livro da minha vida inteira.

Nunca deixarei, creio, de ser ajudante de guarda-livros de um armazém de fazendas. Desejo, com uma sinceridade que é feroz, não passar nunca a guarda- livros.

380.

Há muito — não sei se há dias, se há meses — não registo impressão nenhuma; não penso, portanto não existo. Estou esquecido de quem sou; não sei escrever porque não sei ser. Por um adormecimento oblíquo, tenho sido outro. Saber que me não lembro é despertar.

Desmaiei um bocado da minha vida. Volto a mim sem memória do que tenho sido, e a do que fui sofre de ter sido interrompida. Há em mim uma noção confusa de um intervalo incógnito, um esforço fútil de parte da memória para querer encontrar a outra. Não consigo reatar-me. Se tenho vivido, esqueci-me de o saber.

Não é que seja este primeiro dia do outono sensível — o primeiro de frio não fresco que veste o estio morto de menos luz — que me dê, numa transparência alheada, uma sensação de desígnio morto ou de vontade falsa. Não é que haja, neste interlúdio de coisas perdidas, um vestígio incerto de memória inútil. É, mais dolorosamente que isso, um tédio de estar lembrando o que se não recorda, um desalento do que a consciência perdeu entre algas ou juncos, a beira não sei de quê.

Conheço que o dia, límpido e imóvel, tem um céu positivo e azul menos claro que o azul profundo. Conheço que o sol, vagamente menos de ouro que era, doura de reflexos húmidos os muros e as janelas. Conheço que, não havendo vento ou brisa que o lembre e negue, dorme todavia uma frescura desperta pela cidade indefinida. Conheço tudo isso, sem pensar nem querer, e não tenho sono senão por lembrança, nem saudade senão por desassossego.

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