Sejamos castos como eremitas, puros como corpos sonhados, resignados a ser tudo isto, como freirinhas doidas...
Que o nosso amor seja uma oração... Unge-me de ver-te que eu farei dos meus momentos de te sonhar um rosário onde os meus tédios serão padre-nossos e as minhas angústias avé-marias...
Fiquemos assim eternamente como uma figura de homem em vitral em frente de uma figura de mulher noutro vitral... Entre nós, sombras cujos passos soam frios, a humanidade passando... Murmúrios de rezas, segredos de passarão entre nós... Umas vezes enche-se bem o ar de incensos. Outras vezes, para este lado e para aquele uma figura de estátua rezará aspersões...
E nós sempre os mesmos vitrais, nas cores quando o Sol nos bata, nas linhas quando a noite caia... Os séculos não tocarão no nosso silêncio vítreo... Lá fora passarão civilizações, escacharão revoltas, turbilhonarão festas, correrão mansos quotidianos povos... E nós, ó meu amor irreal, teremos sempre o mesmo gesto inútil, a mesma existência falsa, e a mesma até que um dia, no fim de vários séculos de impérios, a Igreja finalmente rua e tudo acabe... Mas nós que não sabemos dela ficaremos ainda, não sei como, não sei em que espaço, não sei porque tempo, vitrais eternos, horas de ingénuo desenho pintado por um qualquer artista que dorme há muito sob um túmulo godo onde dois anjos de mãos postas gelam em mármore a ideia de morte.
346.
As coisas sonhadas só têm o lado de cá... Não se lhes pode ver o outro lado... Não se pode andar à roda delas... O mal das coisas da vida é que as podemos ir olhando por todos os lados... As coisas de sonho só têm o lado que vemos... Têm amores só puros, como as nossas almas’.
347.
Carta para não mandar
Dispenso-a de comparecer na minha ideia de si.
A sua vida Isso não é o meu amor; é apenas a sua vida.
Amo-a como ao poente ou ao luar, com o desejo de que o momento fique, mas sem que seja meu nele mais que a sensação de tê-lo.
348.
Nada pesa tanto como o afeto alheio — nem o ódio alheio, pois que o ódio é mais intermitente que o afeto; sendo uma emoção desagradável, tende, por instinto de quem a tem, a ser menos frequente. Mas tanto o ódio como o amor nos oprime; ambos nos buscam e procuram, nos não deixam sós.
O meu ideal seria viver tudo em romance, repousando na vida ler as minhas emoções, viver o meu desprezo delas. Para quem tenha a imaginação à flor da pele, as aventuras de um protagonista de romance são emoção própria bastante, e mais, pois que são dele e nossas. Não há grande aventura como ter amado Lady Macbeth, com amor verdadeiro e direto; que tem que fazer que m assim amou senão, por descanso, não amar nesta vida ninguém?
Não sei que sentido tem esta viagem que fui forçado a fazer, entre uma noite e outra noite, na companhia do universo inteiro. Sei que posso ler para me distrair. Considero a leitura como o modo mais simples de entreter esta, como outra, viagem; e, de vez em quando, ergo os olhos do livro onde estou sentindo verdadeiramente, e vejo, como estrangeiro, a paisagem que foge campos, cidades, homens e mulheres, afeições e saudades -, e tudo isso não é mais para mim do que um episódio do meu repouso, uma distração inerte em que descanso os olhos das páginas demasiado lidas.
Só o que sonhamos é o que verdadeiramente somos, porque o mais, por estar realizado, pertence ao mundo e a toda a gente. Se realizasse algum sonho, teria ciúmes dele, pois me haveria traído com o ter-se deixado realizar. Realizei tudo quanto quis, diz o débil, e é mentira; a verdade é que sonhou profeticamente tudo quanto a vida realizou dele. Nada realizamos. A vida atira-nos como uma pedra, e nós vamos dizendo no ar, "Aqui me vou mexendo".
Seja o que for este interlúdio mimado sob o projetor do sol e as lantejoulas das estrelas, não faz mal decerto saber que ele é um interlúdio; se o que está para além das portas do teatro é a vida, viveremos; se é a morte, morreremos, e a peça nada tem com isso.
Por isso nunca me sinto tão próximo da verdade, tão sensivelmente iniciado, como quando nas raras vezes que vou ao teatro ou ao circo: sei então que enfim estou assistindo à perfeita figuração da vida. E os atores e as atrizes, os palhaços e os prestidigitadores são coisas importantes e fúteis, como o sol e a lua, o amor e a morte, a peste, a fome, a guerra na humanidade. Tudo é teatro. Ah, quero a verdade? Vou continuar o romance...
349.
Amais vil de todas as necessidades — a da confidência, a da confissão. E a necessidade da alma de ser exterior.
Confessa, sim; mas confessa o que não sentes. Livra a tua alma, sim, do peso dos seus segredos, dizendo-os; mas ainda bem que os segredos que digas, nunca os tenhas tido. Mente a ti próprio antes de dizeres essa verdade. Exprimir é sempre errar. Sê consciente: exprimir seja, para ti, mentir.
350.