– O mandado está a caminho. O caixão deve ficar na casa até que ele chegue.
A autoridade na voz de Holmes surtiu efeito nos carregadores. Peters desapareceu de repente dentro da casa e os outros obedeceram às ordens.
– Depressa, Watson, depressa! Aqui está uma chave de fenda – gritou Holmes, depois que colocaram o caixão sobre a mesa. Aqui está outra chave para você, meu rapaz! Dou-lhe um soberano se tirar a tampa depressa. Não faça perguntas – mãos à obra! Ótimo! Mais uma vez! De novo! Agora vamos puxar juntos! Está funcionando! Ah, finalmente!
Com um esforço conjunto puxamos a tampa do caixão e imediatamente sentimos um cheiro forte e estonteante de clorofórmio. Dentro, um corpo com a cabeça envolvida em algodão embebido no narcótico. Rapidamente Holmes arrancou tudo e surgiu o rosto inerte e de uma bela mulher de meia-idade. Ele passou os braços em volta da mulher, fazendo-a ficar em posição sentada.
– Está morta, Watson? Ainda respira? Será que chegamos tarde demais?
Durante meia hora tivemos a impressão de que era tarde demais. Parecia que lady Frances não resistira à sufocação e à emanação venenosa do clorofórmio. Mas depois, finalmente, com respiração artificial, com todos os recursos disponíveis, com injeções de éter, uma vibração de vida, alguns tremores nas pálpebras, o embaçamento de um espelho, mostraram o lento retorno à vida.
Pela janela Holmes viu um coche se aproximando.
– Aí está Lestrade com o mandado. Vai ver que os pássaros já fugiram. E aqui – acrescentou, ao ouvir passos apressados no corredor – está alguém que tem mais direito de cuidar desta senhora do que nós. Bom-dia, sr. Green. Creio que será melhor removê-la o quanto antes. Nesse meio-tempo, o enterro pode prosseguir e a pobre velha que ainda está no caixão pode seguir para sua última morada sozinha.
– Você deve acrescentar este caso à sua coleção, meu caro Watson – disse Holmes, à noite. – É um exemplo de eclipse temporário que acomete até mesmo as mentes mais equilibradas. Esses deslizes são comuns para a maioria dos mortais, e grande será aquele capaz de reconhecê-los e saná-los. Quero crer que tenho direito a isso. Passei a noite inteira dando tratos à bola, pensando que uma pista em algum lugar, uma frase solta, uma observação curiosa tivessem chegado ao meu conhecimento e eu as tivesse descartado com facilidade. Então, de repente, com as primeiras luzes da manhã, as palavras surgiram à minha frente. Foi a frase da mulher da casa funerária, contada por Philip Green. Ele a ouviu dizer: “Já devia estar lá a esta altura. Demorou mais por ser fora do comum”. Ela estava falando do caixão. Ele era fora do comum. Só podia significar que ele fora feito com medidas especiais. Mas, por quê? Por quê? Num segundo lembrei-me do tamanho do caixão e da pequena forma no fundo. Por que um caixão tão grande para um corpo tão pequeno? Era para deixar espaço para outro corpo. Os dois corpos seriam enterrados com um só atestado de óbito. Tudo era tão claro, apenas eu não conseguira enxergar. Lady Frances seria enterrada às oito horas. Nossa única chance era impedir que o caixão saísse da casa. Havia uma possibilidade remota de nós a encontrarmos com vida, mas ainda assim era uma possibilidade, como o resultado mostrou. Aqueles vigaristas jamais cometeram um assassinato, pelo que sei. Evitariam qualquer violência até o fim. Poderiam enterrá-la sem nenhum sinal do modo como morrera, e mesmo que fosse exumada, eles ainda teriam uma chance. Minha esperança era que eles tivessem agido dessa forma. Você pode reconstituir a cena muito bem. Você viu o cubículo horrível onde ela ficou presa tanto tempo. Eles entraram e a dominaram com o clorofórmio, trouxeram-na para baixo, puseram mais clorofórmio no caixão para impedir que ela despertasse e aparafusaram a tampa. Engenhoso, Watson. Isto é novo para mim nos anais do crime. Se nosso ex-missionário e a mulher escaparem das garras de Lestrade, tenho certeza de que ainda vou ouvir falar de outros casos brilhantes na carreira futura deles.
o caso do pé do diabo
À curiosas e recordações interessantes ligadas à minha longa e íntima amizade com Sherlock Holmes, enfrento dificuldades por causa de sua aversão à publicidade. Seu espírito cínico sempre foi avesso a qualquer aplauso popular, e nada o divertia mais, ao fim de um caso em que tivesse obtido sucesso, do que transferir o mérito a um policial ortodoxo e ouvir, com um sorriso sarcástico, o coro de parabéns para a pessoa errada. Foi, na verdade, por causa desta atitude de meu amigo, e, evidentemente, não por falta de material interessante, que nos últimos anos eu apresentei ao público uma parte pequena dos meus registros. Minha participação em algumas de suas aventuras sempre foi um privilégio que me impunha discrição e silêncio. Foi, portanto, com grande surpresa que recebi um telegrama de Holmes na última terça-feira – ele nunca escreve uma carta quando basta um telegrama – nos seguintes termos: