– A história não acabou ainda. Receio que não – disse ele. – O senhor pode encontrar perigos piores do que a legislação inglesa, ou piores mesmo que seus inimigos americanos. Acho que o senhor ainda corre perigo, sr. Douglas. Aceite meu conselho e continue alerta.
E agora, leitores pacientes, vou pedir-lhes que venham comigo até um lugar bem distante da Casa Senhorial, de Birlstone, e distante também do ano da graça no qual fizemos nossa movimentada viagem, que terminou com a estranha história do homem conhecido como John Douglas. Desejo que vocês recuem uns vinte anos no tempo, e alguns quilômetros para o oeste, pois assim poderei apresentar-lhes uma narrativa estranha e terrível – tão estranha e tão terrível que vocês podem achar difícil acreditar que tenha acontecido do modo como vou contar. Não pensem que vou começar uma história sem terminar a outra. À medida que vocês lerem, perceberão que não é isso. E quando eu tiver descrito esses fatos tão distantes no tempo e no espaço e vocês tiverem esclarecido esse mistério do passado, vamos nos encontrar novamente em Baker Street, onde tudo isso, assim como muitos outros acontecimentos extraordinários, chegará ao seu final.
os scowrers
O Homem
Era o dia 4 de fevereiro do ano de 1875. O inverno fora rigoroso e a neve cobria todos os desfiladeiros das montanhas Gilmerton. Mas a máquina limpa-trilhos tinha mantido a estrada de ferro aberta e o trem noturno que liga a região de mineração à das instalações siderúrgicas arrastava-se pesadamente pela subida íngreme que vai de Stagville, na planície, a Vermissa, a cidade principal que fica no alto do Vale Vermissa. A partir desse ponto a ferrovia desce na direção de Bartons Crossing, Helmdale e do Condado de Merton, que é uma área exclusivamente agrícola. Era uma ferrovia de apenas uma linha, mas a cada entroncamento, e eles são numerosos, longas filas de vagões carregados com carvão e minério de ferro revelam a riqueza oculta que trouxera uma população rude e uma vida laboriosa a esta área extremamente deserta dos Estados Unidos da América.
Era um lugar deserto mesmo. O primeiro aventureiro que atravessou esse lugar
dificilmente poderia imaginar que os prados mais bonitos e as pastagens mais viçosas não tinham valor algum se comparados com essa terra triste de montanhas escuras e florestas densas. Acima da mata escura e quase impenetrável nas suas encostas, os cumes altos e lisos das montanhas, recobertos de neve, sobressaíam, deixando no centro um vale comprido, tortuoso e fechado. Acima do vale o pequeno trem se arrastava.
As lâmpadas a óleo tinham acabado de ser acesas no teto do vagão de passageiros, um vagão comprido e simples no qual estavam sentadas vinte ou trinta pessoas. A maioria dessas pessoas eram trabalhadores que voltavam do seu trabalho árduo na parte mais baixa do vale. Pelo menos uma dúzia deles, pelo rosto austero e pelas lanternas que traziam, demonstrava ser mineiros. Estavam sentados em grupo, fumando, e conversavam em voz baixa, olhando ocasionalmente para dois homens que estavam sentados do outro lado do vagão, cujos uniformes e distintivos indicavam que eram policiais. Muitas mulheres da classe operária e um ou dois viajantes que deviam ser donos de pequenos empórios locais constituíam o resto dos passageiros, com exceção de um jovem que estava sozinho num canto do carro. É esse homem que nos interessa. Olhem bem para ele, pois vale a pena.
Ele é um jovem de aspecto saudável, altura mediana e não muito longe dos 30 anos. Tem os olhos grandes e acinzentados, sagazes, irônicos, que de vez em quando piscam de maneira inquisitiva enquanto ele observa, através dos óculos, as pessoas em volta. É fácil ver que é uma pessoa sociável e possivelmente simples, ansioso para ser cordial com os demais. Qualquer um o tomaria por uma pessoa gregária e comunicativa, esperta e de sorriso fácil. Ainda assim, quem o examina mais detidamente pode perceber uma certa firmeza em seu queixo e uma rigidez nos lábios que seriam uma advertência de que há muita coisa por trás da fachada desse simpático escocês de cabelo castanho, e que ele é capaz de deixar sua marca – boa ou má – em qualquer sociedade em que seja introduzido.