Estas duas verdades são irredutíveis uma à outra. O sábio abster-se-á de as querer conjugar, e abster-se-á também de repudiar uma ou outra. Terá contudo que seguir uma, saudoso da que não segue; ou repudiar ambas, erguendo-se acima de si mesmo num nirvana próprio.
Feliz quem não exige da vida mais do que ela espontaneamente lhe dá, guiando-se pelo instinto dos gatos, que buscam o sol quando há sol, e quando não há sol o calor, onde quer que esteja. Feliz quem abdica da sua personalidade pela imaginação, e se deleita na contemplação das vidas alheias, vivendo, não todas as impressões, mas o espetáculo externo de todas as impressões alheias. Feliz, por fim, esse que abdica de tudo, e a quem, porque abdicou de tudo, nada pode ser tirado nem diminuído.
O campónio, o leitor de novelas, o puro asceta — estes três são os felizes da vida, porque são estes três que abdicam da personalidade – um porque vive do instinto, que é impessoal, outro porque vive da imaginação, que é esquecimento, o terceiro porque não vive, e, não tendo morrido, dorme.
Nada me satisfaz, nada me consola, tudo — quer haja sido, quer não – me sacia. Não quero ter a alma e não quero abdicar dela. Desejo o que não desejo e abdico do que não tenho. Não posso ser nada nem tudo: sou a ponte de passagem entre o que não tenho e o que não quero.
233.
... A tristeza solene que habita em todas as coisas grandes – nos píncaros como nas grandes vidas, nas noites profundas como nos poemas eternos.
234.
Podemos morrer se apenas amámos.
235.
Só uma vez fui verdadeiramente amado. Simpatias, tive-as sempre, e de todos. Nem ao mais casual tem sido fácil ser grosseiro, ou ser brusco, ou ser até frio para comigo. Algumas simpatias tive que, com auxílio meu, poderia — pelo menos talvez — ter convertido em amor ou afeto. Nunca tive paciência ou atenção do espírito para sequer desejar empregar esse esforço.
A princípio de observar isto em mim, julguei — tanto nos desconhecemos — que havia neste caso da minha alma uma razão de timidez. Mas depois descobri que não havia; havia um tédio das emoções, diferente do tédio da vida, uma impaciência de me ligar a qualquer sentimento contínuo, sobretudo quando houvesse de se lhe atrelar um esforço prosseguido. Para quê? Pensava em mim o que não pensa. Tenho a subtileza bastante, o tato psicológico suficiente para saber o "como"; o "como do como" sempre me escapou. A minha fraqueza de vontade começou sempre por ser uma fraqueza da vontade de ter vontade. Assim me sucedeu nas emoções como me sucede na inteligência, e na vontade mesma, e em tudo quanto é vida.
Mas daquela vez em que uma malícia da oportunidade me fez julgar que amava, e verificar deveras que era amado, fiquei, primeiro, estonteado e confuso, como se me saíra uma sorte grande em moeda inconvertível. Fiquei, depois, porque ninguém é humano sem o ser, levemente envaidecido; esta emoção, porém, que pareceria a mais natural, passou rapidamente. Sucedeu-se um sentimento difícil de definir, mas em que se salientavam incomodamente as sensações de tédio, de humilhação e de fadiga.
De tédio, como se o Destino me houvesse imposto uma tarefa em serões desconhecidos. De tédio, como se um novo dever — o de uma horrorosa reciprocidade — me fosse dado com a ironia de um privilégio, que eu me teria ainda que maçar, agradecendo-o ao Destino. De tédio, como se me não bastasse a monotonia inconsistente da vida, para agora se lhe sobrepor a monotonia obrigatória de um sentimento definido.
E de humilhação, sim, de humilhação. Tardei em perceber a que vinha um sentimento aparentemente tão pouco justificado pela sua causa. O amor a ser amado deveria ter-me aparecido. Deveria ter-me envaidecido de alguém reparar atentamente para a minha existência como ser-amável. Mas, à parte o breve momento de real envaidecimento, em que todavia não sei se o pasmo teve mais parte que a própria vaidade, a humilhação foi a sensação que recebi de mim. Senti que me era dada uma espécie de prémio destinado a outrem — prémio, sim, de valia para quem naturalmente o merecesse.
Mas fadiga, sobretudo fadiga — a fadiga que passa o tédio. Compreendi então uma frase de Chateaubriand que sempre me enganara por falta de experiência de mim mesmo. Diz Chateaubriand, figurando-se em René, "amarem-no cansava-o" — on le fatigait en l'aimant. Conheci, com pasmo, que isto representava uma experiência idêntica à minha, e cuja verdade portanto eu não tinha o direito de negar.