Читаем Livro do Desassossego полностью

A fadiga de ser amado, de ser amado deveras! A fadiga de sermos o objeto do fardo das emoções alheias! Converter quem quisera ver-se livre, sempre livre, no moço de fretes da responsabilidade de corresponder, da decência de se não afastar, para que se não suponha que se é príncipe nas emoções e se renega o máximo que uma alma humana pode dar. A fadiga de se nos tornar a existência uma coisa dependente em absoluto de uma relação com um sentimento de outrem! A fadiga de, em todo o caso, ter forçosamente que sentir, ter forçosamente, ainda que sem reciprocidade, que amar um pouco também!

Passou de mim, como até mim veio, esse episódio na sombra. Hoje não resta dele nada, nem na minha inteligência, nem na minha emoção. Não me trouxe experiência alguma que eu não pudesse ter deduzido das leis da vida humana cujo conhecimento instintivo albergo em mim porque sou humano. Não me deu nem prazer que eu recorde com tristeza, ou pesar que eu lembre com tristeza também. Tenho a impressão de que foi uma coisa que li algures, um incidente sucedido a outrem, novela de que li metade, e de que a outra metade faltou, sem que me importasse que faltasse, pois até onde a li estava certa, e, embora não tivesse sentido, tal era já que lhe não poderia dar sentido a parte faltante, qualquer que fosse o seu enredo.

Resta-me apenas uma gratidão a quem me amou. Mas é uma gratidão abstrata, pasmada, mais da inteligência do que de qualquer emoção. Tenho pena que alguém tivesse tido pena pela minha causa; é disso que tenho pena, e não tenho pena de mais nada.

Não é natural que a vida me traga outro encontro com as emoções naturais. Quase desejo que apareça para ver como sinto dessa segunda vez, depois de ter atravessado toda uma extensa análise da primeira experiência. É possível que sinta menos; é também possível que sinta mais. Se o Destino o der, que o dê. Sobre as emoções tenho curiosidade. Sobre os factos, quaisquer que venham a ser, não tenho curiosidade alguma.

236.

Não se subordinar a nada — nem a um homem, nem a um amor, nem a uma ideia, ter aquela independência longínqua que consiste em não crer na verdade, nem, se a houvesse, na utilidade do conhecimento dela — tal é o estado em que, parece-me, deve decorrer, para consigo mesma, a vida íntima intelectual dos que não vivem sem pensar. Pertencer — eis a banalidade. Credo, ideal, mulher ou profissão — tudo isso é a cela e as algemas. Ser é estar livre. A mesma ambição, se vão orgulho e paixão, é um fardo, não nos orgulharíamos se compreendêssemos que é um cordel pelo qual nos puxam. Não: nem ligações connosco! Livres de nós como dos outros, contemplativos sem êxtase, pensadores sem conclusão, viveremos, libertos de Deus, o pequeno intervalo que a distração dos algozes concede ao nosso êxtase na parada. Temos amanhã a guilhotina. Se a não tivéssemos amanhã tê-la-íamos depois de amanhã. Passeemos ao sol o repouso antes do fim, ignorantes voluntariamente dos propósitos e dos perseguimentos. O sol dourará nossas caras sem rugas e a brisa terá frescura para quem deixar de esperar’.

Atiro a caneta pela secretária fora e ela rola, regressando, sem que eu a apanhe, pelo declive onde trabalho. Senti tudo de repente. E a minha alegria manifesta-se por este gesto da raiva que não sinto.

237.

Notas para uma regra de vida

Precisar de dominar os outros é precisar dos outros. O chefe é um dependente.

Aumentar a personalidade sem incluir nela nada alheio — nem pedindo aos outros, nem mandando nos outros, mas sendo outros quando outros são precisos.

Reduzir as necessidades ao mínimo, para que em nada dependamos de outrem.

É certo que, em absoluto, esta vida é impossível. Mas não é impossível relativamente.

Consideremos um dono de escritório. Ele tem obrigação de poder dispensar toda a gente; tem a obrigação de saber escrever à máquina, de saber contabilidade, de saber varrer o escritório. Que a sua dependência dos outros seja, portanto, só uma necessidade de não perder tempo, e não uma necessidade da incompetência própria. Que diga ao praticante, "Vá deitar esta carta no correio" porque não quer perder o tempo que levaria o deitá-la no correio, mas não porque não saiba onde é o correio. Que diga ao empregado, "Vá tratar deste assunto ali", porque não quer perder o tempo de o tratar, mas não porque não saiba tratá-lo.

238.

Nenhum prémio certo tem a virtude, nenhum castigo certo o pecado. Nem seria justo que houvesse tal prémio ou tal castigo. Virtude ou pecado são manifestações inevitáveis de organismos condenados a um ou a outro, servindo a pena de serem bons ou a pena de serem maus. Por isso todas as religiões colocam as recompensas e os castigos, merecidos por quem, nada sendo nem podendo, nada pôde merecer, em outros mundos, de que nenhuma ciência pode dar notícia, de que nenhuma fé pode transmitir a visão.

Abdiquemos, pois, de toda a crença sincera, como de toda a preocupação de influir em outrem.

A vida, disse Tarde’, é a busca do impossível através do inútil.

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