Tenho uma espécie de dever de sonhar sempre, pois, não sendo mais, nem querendo ser mais, que um espectador de mim mesmo, tenho que ter o melhor espetáculo que posso. Assim me construo a ouro e sedas, em salas supostas, palco falso, cenário antigo, sonho criado entre jogos de luzes brandas e músicas — visíveis.
Guardo, íntima, como a memória de um beijo grato, a lembrança de infância de um teatro em que o cenário azulado e lunar representava o terraço de um palácio impossível. Havia, pintado também, um parque vasto em roda, e gastei a alma em viver como real aquilo tudo. A música, que soava branda nessa ocasião mental da minha experiência da vida, trazia para real de febre esse cenário dado.
O cenário era definitivamente azulado e lunar. No palco não me lembro quem aparecia, mas a peça que ponho na paisagem lembrada sai-me hoje dos versos de Verlaine e de Pessanha; não era a que deslembro, passada no palco vivo aquém daquela realidade de azul música. Era minha e fluida, a mascarada imensa e lunar, o interlúdio de prata e azul findo.
Depois veio a vida. Nessa noite levaram-me a cear ao Leão. Tenho ainda a memória dos bifes no paladar da saudade — bifes, sei ou suponho, como hoje ninguém faz ou eu não como. E tudo se me mistura — infância, vivida a distância, comida saborosa de noite, cenário lunar, Verlaine futuro e eu presente — numa diagonal difusas, num espaço falso entre o que fui e o que sou.
222.
Como nos dias em que a trovoada se prepara e os ruídos da rua falam alto com uma voz solitária.
A rua franziu-se de luz intensa e pálida, e o negrume baço tremeu, de leste a oeste do mundo, com um estrondo feito de escangalhamentos ecoantes... A tristeza dura da chuva bruta piorou o ar negro de intensidade feia. Frio, morno, quente — tudo ao mesmo tempo -, o ar em toda a parte era errado. E, a seguir, pela ampla sala uma cunha de luz metálica abriu brecha nos repousos dos corpos humanos, e, com o sobressalto gelado, um pedregulho de som bateu em toda a parte, esfacelando-se com silêncio duro. O som da chuva diminui como uma voz de menos peso. O ruído das ruas diminui angustiantemente. Nova luz, de um amarelado rápido, tolda o negrume surdo, mas houve agora uma respiração possível antes que o punho do som trémulo ecoasse súbito doutro ponto; como uma despedida zangada, a trovoada começava a aqui não estar com um sussurro arrastado e findo, sem luz na luz que aumentava, o tremor da trovoada acalmava nos largos longes — rodava em Almada...
Uma súbita luz formidável estilhaçou-se . Tudo estacou. Os corações pararam um momento. Todos são pessoas muito sensíveis. O silêncio aterra como se houvera morte. O som da chuva que aumenta alivia como lágrimas de tudo. Há chumbo.
223.
O gládio de um relâmpago frouxo volteou sombriamente no quarto largo.
E o som a vir, suspenso um hausto amplo, retumbou, emigrando profundo.
O som da chuva chorou alto, como carpideiras no intervalo das falas. Os pequenos sons destacaram-se cá dentro, inquietos.
224.
... Esse episódio da imaginação a que chamamos realidade.
Há dois dias que chove e que cai do céu cinzento e frio uma certa chuva, da cor que tem, que aflige a alma. Há dois dias... Estou triste de sentir, e reflito-o à janela ao som da água que pinga e da chuva que cai. Tenho o coração opresso e as recordações transformadas em angústias.
Sem sono, nem razão para o ter, há em mim uma grande vontade de dormir. Outrora, quando eu era criança e feliz, vivia numa casa do pátio ao lado a voz de um papagaio verde a cores. Nunca, nos dias de chuva, se lhe entristecia o dizer, e clamava, sem dúvida do abrigo, um qualquer sentimento constante, que pairava na tristeza como um gramofone antecipado.
Pensei neste papagaio porque estou triste e a infância longínqua o lembra? Não, pensei nele realmente, porque do pátio vizinho de agora, uma voz de papagaio grita arrevesadamente.
Tudo se me confunde. Quando julgo que recordo, é outra coisa que penso; se vejo, ignoro, e quando me distraio, nitidamente vejo.
Viro as costas à janela cinzenta, de vidros frios às mãos que lhes tocam. E levo comigo, por um sortilégio da penumbra, de repente, o interior da casa antiga, fora da qual, no pátio ao lado, o papagaio gritava; e os meus olhos adormecem-se-me de toda a irreparabilidade de ter efetivamente vivido.
225.