Vivemos quase sempre fora de nós, e a mesma vida é uma perpétua dispersão. Porém, é para nós que tendemos, como para um centro em torno do qual fazemos, como os planetas, elipses absurdas e distantes.
218.
Sou mais velho que o Tempo e que o Espaço, porque sou consciente. As coisas derivam de mim; a Natureza inteira é a primogénita da minha sensação.
Busco — não encontro. Quero, e não posso.
Sem mim, o sol nasce e se apaga; sem mim a chuva cai e o vento geme. Não são por mim as estações, nem o curso dos meses, nem a passagem das horas.
Dono do mundo em mim, como de terras que não posso trazer comigo,
219.
Esse lugar ativo de sensações, a minha alma, passeia às vezes comigo conscientemente pelas ruas noturnas da cidade, nas horas tedientas em que me sinto um sonho entre sonhos de outra espécie, à luz do gás, pelo ruído transitório dos veículos.
Ao mesmo tempo que em corpo me embrenho por vielas e sub-ruas, torna-se-me complexa a alma em labirintos de sensação. Tudo quanto de aflitivamente pode dar a noção de irrealidade e de existência fingida, tudo quanto soletra, sem ser ao raciocínio, mas concreta e mente, o quanto é mais do que oco o lugar do universo, desenrola-se-me então objetivamente no espírito apartado. Angustia-me, não sei porquê, essa extensão objetiva de ruas estreitas, e largas, essa consecução de candeeiros, árvores, janelas iluminadas e escuras, portões fechados e abertos, vultos heterogeneamente noturnos que a minha vista curta, no que de maior imprecisão lhes dá, ajuda a tornar subjetivamente monstruosos, incompreensíveis e irreais.
Fragmentos verbais de inveja, de luxúria, de trivialidade vão de embate ao meu sentido de ouvir. Sussurrados murmúrios ondulam para a minha consciência.
Pouco a pouco vou perdendo a consciência nítida de que existo coextensamente com isto tudo, de que realmente me movo, ouvindo e pouco vendo, entre sombras que representam entes e lugares onde entes o são. Torna-se-me gradualmente, escuramente, indistintamente incompreensível como é que isto tudo pode ser em face do tempo eterno e do espaço infinito.
Passo aqui, por passiva associação de ideias, a pensar nos homens que desse espaço e desse tempo tiveram a consciência analisadora e compreendedoramente perdida. Sente-se-me grotesca a ideia de que entre homens como estes, em noites sem dúvida como esta, em cidades decerto não essencialmente diversas da em que penso, os Platões, os Scotus Erigenas, os Kants, os Hegels como que se esqueceram disto tudo, como que se tornaram diversos desta gente. E eram da mesma humanidade.
Eu mesmo que passeio aqui com estes pensamentos, com que horrorosa nitidez, ao pensá-los, me sinto distante, alheio, confuso e acabo a minha solitária peregrinação. Um vasto silêncio, que sons miúdos não alteram no como é sentido, como que me assalta e subjuga. Um cansaço imenso das meras coisas, do simples estar aqui, do encontrar-me deste modo pesa-me do espírito ao corpo. Quase que me surpreendo a querer gritar, de afundando-me que me sinto num oceano de uma imensidão que nada tem com a infinidade do espaço nem com a eternidade do tempo, nem com qualquer coisa suscetível de medida e nome. Nestes momentos de terror supremamente silencioso não sei o que sou materialmente, o que costumo fazer, o que me é usual querer, sentir e pensar. Sinto-me perdido de mim mesmo, fora do meu alcance. A ânsia moral de lutar, o esforço intelectual para sistematizar e compreender, a irrequieta aspiração artista a produzir uma coisa que ora não compreendo, mas que me lembro de compreender, e a que chamo beleza, tudo isto se me some do instinto do real, tudo isto se me afigura nem digno de ser pensado inútil, vazio e longínquo. Sinto-me apenas um vácuo, uma ilusão de uma alma, um lugar de um ser, uma escuridão de consciência onde estranho inseto procurasse em vão sequer a cálida lembrança’ de uma luz.
220.
Intervalo doloroso
Sonhar, para quê?
Que fiz de mim? Nada.
Se espiritualizar em Noite, se estátua Interior sem contornos, Sonho Exterior sem ser-sonhado.
221.
Tenho sido sempre um sonhador irónico, infiel às promessas interiores.
Gozei sempre, como outro e estrangeiro, as derrotas dos meus devaneios, assistente casual ao que pensei ser. Nunca dei crença aquilo em que acreditei. Enchi as mãos de areia, chamei-lhe ouro, e abri as mãos dela toda, escorrente. A frase fora a única verdade. Com a frase dita estava tudo feito; o mais era a areia que sempre fora.
Se não fosse o sonhar sempre, o viver num perpétuo alheamento, poderia, de bom grado, chamar-me um realista, isto é, um indivíduo para quem o mundo exterior é uma nação independente. Mas prefiro não me dar nome, ser o que sou com uma certa obscuridade e ter comigo a malícia de me não saber prever.