Читаем Livro do Desassossego полностью

Raiam na minha atenção vagos ruídos, nítidos e dispersos, que enchem de ser já dia a minha consciência do nosso quarto... O nosso quarto? Nosso de que dois, se eu estou sozinho? Não sei. Tudo se funde e só fica, fugindo, uma realidade-bruma em que a minha incerteza soçobra e o meu compreender-me, embalado de ópios, adormece...

A manhã rompeu, como uma queda, do cimo pálido da Hora...

Acabaram de arder, meu amor, na lareira da nossa vida, as achas dos nossos sonhos...

Desenganemo-nos da esperança, porque trai, do amor, porque cansa, da vida, porque farta e não sacia, e até da morte, porque traz mais do que se quer e menos do que se espera.

Desenganemo-nos, ó Velada, do nosso próprio tédio, porque se envelhece de si próprio e não ousa ser toda a angústia que e não choremos, não odiemos, não desejemos...

Cubramos, ó Silenciosa, com um lençol de linho fino o perfil hirto e morto da nossa Imperfeição...

Nossa Senhora do Silêncio

Às vezes quando, abatido e humilde, a própria força de sonhar se me desfolha e se me seca, e o meu único sonho só pode ser’ o pensar nos meus sonhos, folheio-os então, como a um livro que se folheia e se torna a folhear sem ler mais que palavras inevitáveis. É então que me interrogo sobre quem tu és, figura que atravessas todas as minhas antigas visões demoradas de paisagens outras e de interiores antigos e de cerimoniais faustosos de silêncio. Em todos os meus sonhos ou apareces, sonho, ou, realidade falsa, me acompanhas. Visito contigo regiões que são talvez sonhos teus, terras que são talvez corpos teus de ausência e desumanidade, o teu corpo essencial descontornado para planície calma e monte de perfil frio em jardim de palácio oculto. Talvez eu não tenha outro sonho senão tu, talvez seja nos teus olhos, encostando a minha face à tua, que eu lerei essas paisagens impossíveis, esses tédios falsos, esses sentimentos que habitam a sombra dos meus cansaços e as grutas dos meus desassossegos. Quem sabe se as paisagens dos meus sonhos não são o meu modo de não te sonhar? Eu não sei quem tu és, mas sei ao certo o que sou? Sei eu o que é sonhar para que saiba o que vale o chamar-te o meu sonho? Sei eu se não és uma parte, quem sabe se a parte essencial e real, de mim? E sei eu se não sou eu o sonho e tu a realidade, eu um sonho teu e não tu um Sonho que eu sonhe?

Que espécie de vida tens? Que modo de ver é o modo como te vejo? O teu perfil? Nunca é o mesmo, mas não muda nunca. E eu digo isto porque sei, ainda que não saiba que o sei. O teu corpo? Nu é o mesmo que vestido, sentado está na mesma atitude do que quando deitado ou de pé. Que significa isto, que não significa nada?

A minha vida é tão triste, e eu nem penso em chorá-la; as minhas horas tão falsas, e eu nem sonho o gesto de parti-las.

Como não te sonhar? Como não te sonhar? Senhora das Horas que passam, Madona das águas estagnadas e das algas mortas, Deusa Tutelar dos desertos abertos e das paisagens negras de rochedos estéreis — livra-me da minha mocidade.

Consoladora dos que não têm consolação, Lágrima dos que nunca choram, Hora que nunca soa — livra-me da alegria e da felicidade.

Ópio de todos os silêncios, Lira para não se tanger, Vitral de lonjura e de abandono — faz com que eu seja odiado pelos homens e escarnecido pelas mulheres.

Címbalo de Extrema-Unção, Carícia sem gesto, Pomba morta à sombra, Óleo de horas passadas a sonhar  — livra-me da religião, porque é suave; e da descrença porque é forte.

Lírio fanando à tarde, Cofre de rosas murchas, silêncio entre prece e prece . Enche-me de nojo de viver, de ódio de ser são, de desprezo por ser jovem.

Torna-me inútil e estéril, ó Acolhedora de todos os sonhos vagos; faz-me puro sem razão para o ser, e falso sem amor a sê-lo, ó Água Corrente das Tristezas Vividas; que a minha boca seja uma paisagem de gelos, os meus olhos dois lagos mortos, os meus gestos um esfolhar lento de árvores velhinhas – ó Ladainha de Desassossegos, ó Missa-Roxa de Cansaços, ó Corola, ó Fluido, ó Ascensão!...

Que pena eu ter de te rezar como a uma mulher, e não te querer  como a um homem, e não te poder erguer os olhos do meu sonho como Aurora-ao-contrário do sexo irreal dos anjos que nunca entraram no céu!

***

Rezo a ti o meu amor porque o meu amor é já uma oração; mas nem te concebo como amada, nem te ergo ante mim como santa.

Que os teus actos sejam a estátua da renúncia, os teus gestos o pedestal da indiferença, as tuas palavras os vitrais da negação.

***

Esplendor do nada, nome do abismo, sossego do Além...

Virgem eterna antes dos deuses e dos pais dos deuses, e dos pais dos pais dos deuses, infecunda de todos os mundos, estéril de todas as almas...

A ti são oferecidos os dias e os seres; os astros são votos no teu templo, e o cansaço dos deuses volta ao teu regaço como a ave ao ninho que não sabe como fez.

Que do auge da angústia se aviste o dia, e, se nenhum dia se aviste, que seja esse o dia que se aviste!

Esplende, ausência de sol; brilha, luar que cessas...

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