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O conhecimento pessoal precisa ser, também, de liberdade de contemplação, a que o meu género de amar deseja. Não podemos fitar, contemplar em liberdade quem conhecemos pessoalmente. O que é supérfluo é a menos para o artista, porque, perturbando-o, diminui o efeito. O meu destino natural de contemplador indefinido e apaixonado das aparências e da manifestação das coisas — objetivista dos sonhos, amante visual das formas e dos aspetos da natureza. Não é um caso do que os psiquiatras chamam onanismo psíquico, nem sequer do que chamam erotomania. Não fantasio, como no onanismo psíquico; não me figuro em sonho amante carnal, ou sequer amigo de fala, da criatura que fito e recordo: nada fantasio dela. Nem, como o erotómano, a idealizo e a transporto para fora da esfera da estética concreta: não quero dela, ou penso dela, mais que o que me dá aos olhos e à memória direta e pura do que os olhos viram.

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Nem em torno dessas figuras, com cuja contemplação me entretenho, e o meu costume tecer qualquer enredo da fantasia. Vejo-as, e o valor delas para mim está só em serem vistas. Tudo mais, que lhes acrescentasse, diminui-las-ia, porque diminuiria, por assim dizer, a sua "visibilidade".

Quanto eu fantasiasse delas, forçosamente, no próprio momento de fantasiar, eu o conheceria como falso; e, se o sonhado me agrada, o falso me repugna. O sonho puro encanta-me, o sonho que não tem relação com a realidade, nem ponto de contacto com ela. O sonho imperfeito, com ponto de partida na vida, desgosta-me, ou, antes, me desgostaria se eu me embrenhasse nele.

Para mim a humanidade é um vasto motivo de decoração, que vive pelos olhos e pelos ouvidos, e, ainda, pela emoção psicológica. Nada mais quero da vida senão assistir a ela. Nada mais quero de mim senão o assistir à vida.

Sou como um ser de outra existência que passa indefinidamente interessado através desta. Em tudo sou alheio a ela. Há entre mim e ela como um vidro. Quero esse vidro sempre muito claro, para a poder examinar sem falha de meio intermédio; mas quero sempre o vidro.

Para todo o espírito cientificamente constituído, ver numa coisa mais que o que lá está é ver menos essa coisa. O que materialmente se acrescenta, espiritualmente a diminui.

Atribuo a este estado de alma a minha repugnância pelos museus. O museu, para mim, é a vida inteira, em que a pintura é sempre exata, e só pode haver inexatidão na imperfeição do contemplador. Mas essa imperfeição, ou faço por diminuí-la, ou, se não posso, contento-me com que assim seja, pois que, como tudo, não pode ser senão assim.

O Major

Nada há que tão intimamente revele, que tão completamente interprete a substância do meu infortúnio nato como o tipo de devaneio que, na verdade, mais acarinho, o bálsamo que com mais íntima frequência escolho para a minha angústia de existir. O resumo da essência do que desejo é só isto: dormir a vida. Quero de mais à vida, para que a possa desejar ida; quero de mais a não viver para ter sobre a vida um anseio demasiado importuno.

Assim, é este, que vou deixar escrito, o melhor dos meus sonhos preferidos. À noite, às vezes, com a casa quieta, porque os donos saíssem ou se calem, fecho as vidraças da minha janela, tapo-as com as pesadas portas; imerso num fato velho, aconchego-me na cadeira profunda e prendo-me no sonho de que sou um major reformado num hotel de província, à hora de depois de jantar, quando ele seja, com um ou outro mais sóbrio, o conviva lento que ficou  sem razão.

Suponho-me nascido assim. Não me interessa a juventude do major reformado, nem os postos militares por onde subiu até àquele meu anseio. Independente do Tempo e da Vida, o maior que me suponho não é posterior a nenhuma vida que tivesse; não tem, nem teve parentes; existe eternamente àquele viver daquele hotel provinciano cansado já de conversas de anedotas que teve com os parceiros na demora.

O Rio da Posse

Que somos todos diferentes, é um axioma da nossa naturalidade . Só nos parecemos de longe, na proporção, portanto, em que não somos nós. A vida é, por isso, para os indefinidos; só podem conviver os que nunca se definem, e são, um e outro, ninguéns .

Cada um de nós é dois, e quando duas pessoas se encontram, se aproximam, se ligam, é raro que as quatro possam estar de acordo. O homem que sonha em cada homem que age, se tantas vezes se malquista com o homem que age, como não se malquistará com o homem que age e o homem que sonha no Outro?

Somos forças porque somos vidas. Cada um de nós tende para si próprio com escala pelos  outros. Se temos por nós mesmos o respeito de nos acharmos interessantes, EI. Toda a aproximação é um conflito. O outro é sempre o obstáculo para quem procura. Só quem não procura é feliz; porque só quem não busca, encontra, visto que quem não procura já tem, e já ter, seja o que for, é ser feliz, como não pensar é a parte melhor  de ser rico.

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