As várias posições que uma borboleta que voa ocupa sucessivamente no espaço são aos meus olhos maravilhados várias coisas que ficam no espaço visivelmente. As minhas reminiscências são tão vívidas que só as sensações mínimas, e de coisas pequeníssimas, é que eu vivo intensamente. Será pelo meu amor ao fútil que isto me acontece. Pode ser que seja pelo meu escrúpulo no detalhe. Mas creio mais — não o sei, estas são as coisas que eu nunca analiso — que é porque o mínimo, por não ter absolutamente importância nenhuma social ou prática, tem, pela mera ausência disso, uma independência absoluta de associações sujas com a realidade, O mínimo sabe-me a irreal. O inútil é belo porque é menos real que o útil, que se continua e prolonga, ao passo que o maravilhoso fútil, o glorioso infinitesimal fica onde está, não passa de ser o que é, vive liberto e independente, O inútil e o fútil abrem na nossa vida real intervalos de estética humilde. Quanto não me provoca na alma de sonhos e amorosas delícias a mera existência insignificante de um alfinete pregado numa fita! Triste de quem não sabe a importância que isso tem!
Depois, entre as sensações que mais penetrantemente doem até serem agradáveis, o desassossego do mistério é uma das mais complexas e extensas. E o mistério nunca transparece tanto como na contemplação das pequeninas coisas, que, como se não movem, são perfeitamente translúcidas a ele, que param para o deixar passar. E mais difícil ter o sentimento do mistério contemplando uma batalha, e contudo pensar no absurdo que é haver gente, e sociedades e combates delas é o que mais pode desfraldar dentro do nosso pensamento a bandeira de conquista do mistério — do que diante da contemplação de uma pequena pedra parada numa estrada, que, porque nenhuma ideia provoca além da de que existe, outra ideia não pode provocar, se continuarmos pensando, do que, imediatamente a seguir, a do seu mistério de existir.
Benditos sejam os instantes, e os milímetros, e as sombras das pequenas coisas, ainda mais humildes do que elas! Os instantes . Os milímetros — que impressão de assombro e ousadia que a sua existência lado a lado e muito aproximada numa fita métrica me causa. As vezes sofro e gozo com estas coisas. Tenho um orgulho tosco nisso.
Sou uma placa fotográfica prolixamente impressionável. Todos os detalhes se me gravam desproporcionadamente a haver um todo. Só me ocupa de mim. O mundo exterior é-me sempre evidentemente sensação. Nunca me esqueço de que sinto.
Na Floresta do alheamento
Sei que despertei e que ainda durmo. O meu corpo antigo, moído de eu viver, diz-me que é muito cedo ainda... Sinto-me febril de longe. Peso-me, não sei porquê...
Num torpor lúcido, pesadamente incorpóreo, estagno, entre o sono e a vigília, num sonho que é uma sombra de sonhar. A minha atenção boia entre dois mundos e vê cegamente a profundeza de um mar e a profundeza de um céu; e estas profundezas interpenetram-se, misturam-se, e eu não sei onde estou nem o que sonho.
Um vento de sombras sopra cinzas de propósitos mortos sobre o que eu sou de desperto. Cai de um firmamento desconhecido um orvalho morno de tédio. Uma grande angústia inerte manuseia-me a alma por dentro e, incerta, altera-me, como a brisa aos perfis das copas.
Na alcova mórbida e morna a antemanhã de lá fora é apenas um hálito de penumbra. Sou todo confusão quieta... Para quê há de um dia raiar?... Custa-me o saber que ele raiará, como se fosse um esforço meu que houvesse de o fazer aparecer.
Com uma lentidão confusa acalmo. Entorpeço-me. Boio no ar, entre velar e dormir, e uma outra espécie de realidade surge, e eu no meio dela, não sei de que onde que não é este...
Surge mas não apaga esta, esta da alcova tépida, essa de uma floresta estranha. Coexistem na minha atenção algemada as duas realidades, como dois fumos que se misturam.
Que nítida de outra e de ela essa trémula paisagem transparente!...
E quem é esta mulher que comigo veste de observada essa floresta alheia? Para que é que tenho um momento de mo perguntar?... Eu nem sei querê-lo saber...
A alcova vaga é um vidro escuro através do qual, consciente dele, vejo essa paisagem,... E a essa paisagem conheço-a há muito, e há muito que com essa mulher que desconheço erro, outra realidade, através da irrealidade dela. Sinto em mim séculos de conhecer aquelas árvores e aquelas flores e aquelas vias em desvios e aquele ser meu que ali vagueia, antigo e ostensivo ao meu olhar, que o saber que estou nesta alcova veste de penumbras de ver...
De vez em quando pela floresta onde de longe me vejo e sinto, um vento lento varre um fumo, e esse fumo é a visão nítida e escura da alcova em que sou atual, destes vagos móveis e reposteiros e do seu torpor de noturna. Depois esse vento passa e torna a ser toda só ela a paisagem daquele outro mundo...
Outras vezes este quarto estreito é apenas uma cinza de bruma no horizonte dessa terra diversa... E há momentos em que o chão que ali pisamos é esta alcova visível...