Tudo se me tornou insuportável, exceto a vida. O escritório, a casa, as ruas — o contrário até, se o tivesse — me sobrebasta e oprime; só o conjunto me alivia. Sim, qualquer coisa de tudo isto é bastante para me consolar. Um raio de sol que entre eternamente no escritório morto; um pregão atirado que sobe rápido até à janela do meu quarto; a existência de gente; o haver clima e mudança de tempo, a espantosa objetividade do mundo...
O raio de sol entrou de repente para mim, que de repente o vi... Era, porém, um risco de luz muito agudo, quase sem cor a cortar à faca nua o chão negro e madeirento, a avivar, à roda de onde passava, os pregos velhos e os sulcos entre as tábuas, negras pautas do não-branco.
Minutos seguidos segui o efeito insensível da penetração do sol no escritório quieto... Ocupações do cárcere! Só os enclausurados veem assim o sol mover-se, como quem olha para formigas.
445.
Dizem que o tédio é uma doença de inertes, ou que ataca só os que nada têm que fazer. Essa moléstia da alma é porém mais subtil: ataca os que têm disposição para ela, e poupa menos os que trabalham, ou fingem que trabalham (o que para o caso é o mesmo) que os inertes deveras.
Nada há pior que o contraste entre o esplendor natural da vida interna, com as suas Índias naturais e os seus países incógnitos, e a sordidez, ainda que em verdade não seja sórdida, de quotidianidade da vida. O tédio pesa mais quando não tem a desculpa da inércia. O tédio dos grandes esforçados é o pior de todos.
Não é o tédio a doença do aborrecimento de nada ter que fazer, mas a doença maior de se sentir que não vale a pena fazer nada. E, sendo assim, quanto mais há que fazer, mais tédio há que sentir.
Quantas vezes ergo do livro onde estou escrevendo e que trabalho a cabeça vazia de todo o mundo! Mais me valera estar inerte, sem fazer nada, sem ter que fazer nada, porque esse tédio, ainda que real, ao menos o gozaria. No meu tédio presente não há repouso, nem nobreza, nem bem-estar em que haja mal-estar: há um apagamento enorme de todos os gestos feitos, não um cansaço virtual dos gestos por não fazer.
446.
Omar Khayyam
O tédio de Khayyam não é o tédio de quem não sabe o que faça, porque na verdade nada pode ou sabe fazer. Esse é o tédio dos que nasceram mortos, e dos que legitimamente se orientam para a morfina ou a cocaína. É mais profundo e mais nobre o tédio do sábio persa. E o tédio de quem pensou claramente e viu que tudo era obscuro, de quem mediu todas as religiões e todas as filosofias e depois disse, como Salomão: "Vi que tudo era vaidade e aflições de ânimo", ou como, ao despedir-se do poder e do mundo, outro rei, que era imperador, nele, Septímio Severo: "Omnia fui, nihil. .." "Fui tudo; nada vale a pena".
A vida, disse Tardei, é a busca do impossível através do inútil; assim diria, se o houvesse dito, Omar Khayyam.
Daí a insistência do persa no uso do vinho. Bebe! Bebe! É toda a sua filosofia prática. Não é o beber da alegria, que bebe porque mais se alegre, porque mais seja ela mesma. Não é o beber do desespero, que bebe para esquecer, para ser menos ele mesmo. Ao vinho junta a alegria, a ação e o amor; e há que reparar que não há em Khayyam nota alguma de energia, nenhuma frase de amor. Aquela Sàki, cuja figura grácil entrevista surge (mas surge pouco) nos rubaiyat, não é senão a "rapariga que serve o vinho". O poeta é grato à sua esbelteza como o fora à esbelteza da ânfora, onde o vinho se contivesse.
A alegria fala, do vinho, como o Deão Aldrich :
A filosofia prática de Khayyam reduz-se pois a um epicurismo suave, esbatido até ao mínimo do desejo de prazer. Basta-lhe ver rosas e beber vinho.
Uma brisa leve, uma conversa sem intuito nem propósito, um púcaro de vinho, flores, em isso, e em não mais do que isso, põe o sábio persa o seu desejo máximo. O amor agita e cansa, a ação dispersa e falha, ninguém sabe saber e pensar embacia tudo. Mais vale pois cessar em nós de desejar ou de esperar, de ter a pretensão fútil de explicar o mundo, ou o propósito estulto de o emendar ou governar. Tudo é nada, ou, como se diz na Antologia Grega, "tudo vem da sem-razão", e é um grego, e portanto um racional, que o diz.
447.
Quedar-nos-emos indiferentes à verdade ou mentira de todas as religiões, de todas as filosofias, de todas as hipóteses inutilmente verificáveis a que chamamos ciências. Tão-pouco nos preocupará o destino da chamada humanidade, ou o que sofra ou não sofra no seu conjunto. Caridade, sim, para com o "próximo" como no Evangelho se diz, e não com o homem, de que nele se não fala. E todos, até certo ponto, assim somos: que nos pesa, ao melhor de nós, um massacre na China? Mais nos dói, ao que de nós mais imagine, a bofetada injusta que vimos dar na rua a uma criança.
Caridade para com todos, intimidade com nenhum. Assim interpreta fitzgerald’, num passo de uma sua nota, qualquer coisa da ética de Khayyam.
Recomenda o Evangelho amor ao próximo: não diz amor ao homem ou à humanidade, de que verdadeiramente ninguém pode curar.