Cara-Malhada chegara até eles ainda jovem. Lorde Steffon, de boa lembrança, encontrara-o em Volantis, do outro lado do mar estreito. O rei, o antigo rei, Aerys II Targaryen, que não era tão louco assim naqueles tempos, enviara sua senhoria em busca de uma noiva para o Príncipe Rhaegar, que não tinha irmãs com quem casar. “Encontramos o mais magnífico dos bobos”, escrevera a Cressen, uma quinzena antes da hora de regressar da infrutífera missão. “É ainda jovem, mas ágil como um macaco, e espirituoso como uma dúzia de cortesãos. Sabe malabarismo, adivinhas e magia, e é capaz de cantar agradavelmente em quatro línguas. Compramos a sua liberdade e esperamos trazê-lo conosco para casa. Robert vai adorá-lo; com o tempo, o bobo talvez até consiga ensinar Stannis a rir.”
Recordar aquela carta enchia Cressen de tristeza. Ninguém conseguira ensinar Stannis a rir, muito menos o jovem Cara-Malhada. A tempestade chegara de repente, uivando, e a Baía dos Naufrágios provara a verdade do seu nome. A galé de dois mastros do senhor,
O rapaz chegara à costa no terceiro dia. Meistre Cressen tinha descido com os outros, a fim de ajudar a reconhecer os mortos. Quando encontraram o bobo, estava nu, com a pele branca, enrugada e cheia de areia molhada. Cressen julgou que se tratava de mais um cadáver, mas, quando Jommy o agarrou pelos tornozelos a fim de arrastá-lo para o carro fúnebre, o rapaz tossiu água e se sentou. Até o dia da sua morte, Jommy jurou que a pele de Cara-Malhada estava fria e pegajosa.
Ninguém jamais conseguiu explicar aqueles dois dias que o bobo passou perdido no mar. Os pescadores gostavam de dizer que uma sereia havia lhe ensinado a respirar água em troca de seu sêmen. O próprio Cara-Malhada nada disse. O jovem espirituoso e inteligente nunca chegou a Ponta Tempestade; o rapaz que encontraram era outra pessoa, quebrado de corpo e de mente, quase incapaz de falar, muito menos de gracejar. Mas sua cara de bobo não deixava dúvidas sobre quem era. Era costume da Cidade Livre de Volantis tatuar o rosto dos escravos e dos servos; do pescoço ao couro cabeludo, a pele do rapaz tinha sido marcada com quadrados vermelhos e verdes.
– O desgraçado está louco, e com dores, e não presta para ninguém, nem para si mesmo – tinha declarado o velho Sor Harbert, naqueles tempos castelão de Ponta Tempestade. – A coisa mais bondosa que se pode fazer com esse tipo é encher sua taça com o leite da papoula. Um sono sem dor, e acaba tudo. Ele iria abençoá-lo se tivesse esperteza para isso.
Mas Cressen se recusou e acabou vencendo. Não saberia dizer se Cara-Malhada tinha sido feliz com essa vitória, nem mesmo agora, tantos anos depois.
–
“
– Um bobo canta o que quer – disse o meistre à sua ansiosa princesa. – Não deve levar suas palavras a sério. De manhã, ele poderá se lembrar de outra canção, e esta nunca mais será ouvida.
“Ele é capaz de cantar agradavelmente em quatro línguas”, escrevera Lorde Steffon…
Pylos entrou a passos largos:
– Meistre, as minhas desculpas.
– Você se esqueceu do mingau – Cressen completou, rindo. Aquilo não era do feitio de Pylos.
– Meistre, Sor Davos regressou ontem à noite. Estavam falando disso na cozinha. Achei que gostaria de saber de imediato.
– Davos… Ontem à noite, você diz? Onde está ele?
– Com o rei. Passaram juntos a maior parte da noite.
Em tempos passados, Lorde Stannis teria mandado acordá-lo a qualquer hora, para tê-lo junto a si, a fim de aconselhá-lo.
– Eu devia ter sido informado – queixou-se Cressen. – Devia ter sido acordado – desprendeu seus dedos dos de Shireen: – As minhas desculpas, senhora, mas tenho de falar com o senhor seu pai. Pylos, dê-me o braço. Há degraus demais neste castelo, e parece-me que acrescentam uns tantos todas as noites, só para me aborrecer.
Shireen e Cara-Malhada seguiram-nos, mas a menina rapidamente se cansou do passo rastejante do velho e correu na frente, com o bobo a balançar atrás dela, fazendo os guizos tinir loucamente.