“Agora desligue o gravador.”
— Era esse seu testamento?
Não respondeu. Como eu não fazia nada, tomou ela própria a iniciativa. Em seguida, foi até o aparelho de som, e colocou a famosa música das estepes, que agora eu quase conhecia de cor. Dançou da maneira que fazia nos rituais, completamente fora de compasso,e eu sabia onde estava pretendendo chegar. Seu gravador continuava ligado, como testemunha silenciosa de tudo que estava se passando ali. Enquanto a luz de uma tarde ensolarada entrava pelas vidraças, Athena mergulhava em busca de outra luz, que estava ali desde que o mundo havia sido criado.
A centelha da Mãe parou de dançar, interrompeu a música, colocou a cabeça entre as mãos, e ficou quieta por algum tempo. Logo levantou os olhos e encarou-me.
— Você sabe quem está aqui, não sabe?
— Sim. Athena e sua parte divina, Hagia Sofia.
— Eu me habituei a fazer isso. Não penso que seja necessário, mas foi o método que descobri para encontrá-la, e 363
agora se tornou uma tradição em minha vida. Você sabe com quem está falando: com Athena. Hagia Sofia sou eu.
— Sei disso. Quando dancei pela segunda vez em sua casa, descobri também um espírito que me guia: Philemon. Mas não converso muito com ele, não escuto o que ele me diz. Sei que, quando está presente, é como se nossas duas almas finalmente se encontrassem.
— Isso mesmo. E Philemon e Hagia Sofia vão hoje conversar sobre amor.
— Eu teria que dançar.
— Não precisa. Philemon me entenderá, pois vejo que foi tocado pela minha dança. O homem que está diante de mim sofre por algo que julga jamais ter conseguido atingir: o meu amor.
“Mas o homem que está além de você mesmo, esse compreende que a dor, a ansiedade, o sentimento de abandono são desnecessários e infantis: eu te amo. Não da maneira que sua parte humana deseja, mas da maneira que a centelha divina assim desejou. Habitamos uma mesma tenda, que foi colocada em nosso caminho por Ela. Ali entendemos que não somos escravos de nossos sentimentos, mas seus mestres.
“Servimos e somos servidos, abrimos as portas de nossos quartos, e nos abraçamos. Talvez nos beijemos também —
porque tudo que acontece com intensidade na terra terá seu correspondente no plano invisível. E você sabe que não estou a provocá-lo, nem estou brincando com seus sentimentos ao dizer isso.”
— O que é o amor, então?
— A alma, o sangue, e o corpo da Grande Mãe. Eu te amo com a mesma força que almas exiladas se amam, quando se encontram no meio do deserto. Nunca se passará nada de físico entre nós, mas nenhuma paixão é inútil, nenhum amor é jogado fora. Se a Mãe despertou isso em seu coração, também despertou no meu, embora você talvez o aceite melhor. É impossível que a energia do amor 364
se perca — ela é mais poderosa que qualquer coisa, e se manifesta de muitas maneiras.
— Não sou suficientemente forte para isso. Essa visão abstrata me deixa deprimido e mais solitário que nunca.
— Nem eu: preciso de alguém ao meu lado. Mas um dia nossos olhos vão se abrir, as diversas formas de Amor poderão se manifestar, e o sofrimento desaparecerá da face da Terra.
“Penso que não deve demorar muito; muitos de nós estão retornando de uma longa viagem, onde fomos induzidos a procurar coisas que não nos interessavam. Agora nos damos conta que eram falsas. Mas esta volta não se faz sem dor — porque passamos muito tempo fora, achamos que somos estrangeiros em nossa própria terra.
“Levaremos algum tempo para encontrar os amigos que também partiram, os lugares onde estavam nossas raízes e nossos tesouros. Mas isso terminará acontecendo.”
Não sei por que razão, comecei a ficar comovido. E
isso me empurrou adiante.
— Quero continuar falando de amor.
— Estamos falando. Este foi sempre o objetivo de tudo que busquei em minha vida; deixar que o amor se manifestasse em mim sem barreiras, que preenchesse meus espaços em branco, que me fizesse dançar, sorrir, justificar minha vida, proteger meu filho, entrar em contato com os céus, com homens e mulheres, com todos aqueles que foram colocados no meu caminho.
“Tentei controlar meus sentimentos dizendo ‘esse merece meu carinho’, ou ‘esse não merece’, coisas deste tipo. Até que entendi meu destino, quando vi que podia perder a coisa mais importante de minha vida.“
— O seu filho.
— Exato. A manifestação mais completa de amor. Foi no momento em surgiu a possibilidade de o afastarem de mim, que me encontrei comigo mesmo, entendendo que jamais poderia ter nada, perder nada. Compreendi isso depois de chorar compulsivamente por horas. Foi só depois de sofrer muito, intensamente, que a parte 365
de mim que chamo Hagia Sofia me disse: “Que bobagem é essa? O
amor sempre permanece! E seu filho sempre partirá, mais cedo ou mais tarde!”.
Eu começava a compreender.
— O amor não é um hábito, um compromisso, ou uma dívida. Não é aquilo que nos ensinam as músicas românticas — o amor é. É esse o testamento de Athena, ou Sherine, ou Hagia Sofia: o amor é. Sem definições. Ame e não pergunte muito. Apenas ame.
— É difícil.
— Está gravando?
— Você pediu que desligasse.