Pegamos um avião um mês depois; nosso amigo tinha negócios importantes com o tal ditador que governava o país na época, e do qual não me lembro o nome (
Nos levaram até um berçário, onde fazia muito frio, e eu fiquei imaginando como é que podiam deixar aquelas pobres criaturas em tal situação. Meu primeiro instinto foi adotar todas, levar para nosso país onde havia sol e liberdade, mas claro que isso era uma idéia maluca. Passeamos entre os berços, escutando choros, aterrorizados pela importância da decisão a tomar.
Por mais de uma hora, nem eu nem meu marido trocamos qualquer palavra. Saímos, tomamos café, fumamos cigarros, voltamos — e isso se repetiu várias vezes. Reparei que a mulher encarregada da adoção já estava ficando impaciente, precisava logo decidir; neste momento, seguindo um instinto que eu ousaria chamar de maternal, como se tivesse encontrado um filho que tinha que ser meu nesta encarnação mas que tinha chegado ao mundo através de outro ventre, apontei para uma menina.
A encarregada sugeriu que pensássemos melhor. Logo ela, que parecia tão impaciente com nossa demora! Mas eu já estava decidida.
Mesmo assim, com todo o cuidado, procurando não ferir meus sentimentos (ela achava que tínhamos contatos com os altos escalões do governo romeno), sussurrou para que meu marido não ouvisse:
-Sei que não vai dar certo. É filha de cigana.
Respondi que uma cultura não pode ser transmitida através dos genes — a criança, que tinha apenas três meses, seria minha filha e do meu marido, educada segundo nossos costumes.
Conheceria a igreja que freqüentamos, as praias onde vamos passear, leria seus livros em francês, estudaria na Escola 165
Americana de Beirute. Além do mais, não tinha qualquer informação
— e continuo sem ter — sobre a cultura cigana. Sei apenas que viajam, nem sempre tomam banho, enganam os outros, e usam brinco na orelha. Corre a lenda de que costumam raptar crianças para levar em suas caravanas, mas ali estava acontecendo justamente o contrário: tinham deixado uma criança para trás, para que eu me encarregasse dela.
A mulher ainda tentou me dissuadir, mas eu já estava assinando os papéis, e pedindo que meu marido fizesse o mesmo. Na volta para Beirute, o mundo parecia diferente: Deus havia me dado uma razão para existir, para trabalhar, para lutar neste vale de lágrimas. Tínhamos agora uma criança para justificar todos os nossos esforços.
Sherine cresceu em sabedoria e beleza — acho que todos os pais dizem isso, mas penso que era uma criança realmente excepcional. Certa tarde, ela já tinha cinco anos, um de meus irmãos me disse que, se ela quisesse trabalhar no exterior o seu nome sempre denunciaria sua origem — e sugeriu que o mudássemos para algo que não dissesse absolutamente nada, como Athena. Claro que hoje sei que Athena não apenas é a capital de um país, mas também a deusa da sabedoria, da inteligência, e da guerra.
E possivelmente o meu irmão não apenas soubesse isso, mas estivesse consciente dos problemas que um nome árabe poderia causar no futuro — estava metido em política, como toda nossa família, e desejava proteger sua sobrinha das nuvens negras que ele, mas só ele, conseguia enxergar no horizonte. O mais surpreendente é que Sherine gostou do som da palavra. Em uma única tarde, começou a referir-se a si mesma como Athena, e ninguém conseguiu mais tirar isso de sua cabeça. Para agradá-la, adotamos também este apelido, pensando que logo aquilo iria passar.
Será que um nome pode afetar a vida de uma pessoa?
Porque o tempo passou, o apelido resistiu, e terminamos por nos adaptar a ele.
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Aos doze anos, descobrimos que tinha uma certa vocação religiosa — vivia na igreja, sabia os evangelhos de cor, e isso era ao mesmo tempo uma bênção e uma maldição. Em um mundo que começava a ser cada vez mais dividido pelas crenças religiosas, eu temia pela segurança de minha filha. A esta altura, Sherine já começava a nos dizer, como se fosse a coisa mais normal do mundo, que tinha uma série de amigos invisíveis — anjos e santos cujas imagens costumava ver na igreja que freqüentávamos. É claro que todas as crianças do mundo têm visões, embora raramente se lembrem disso depois que passam de determinada idade. Também costumam dar vida a coisas inanimadas, como bonecas ou tigres de pelúcia. Mas comecei a achar que estava exagerando quando um dia fui buscá-la na escola, e ela me disse ter visto “uma mulher vestida de branco, parecida com a Virgem Maria”.