Não era um ultimato. Eu tinha vinte anos, ela dezenove, e pensava que ainda era muito cedo para qualquer compromisso desta natureza.
Mas Athena falava seríssimo. E eu precisava escolher entre perder a única coisa que realmente ocupava meu pensamento —
o amor por aquela mulher — ou perder minha liberdade e todas as escolhas que o futuro me prometia.
Honestamente, a decisão não foi nem um pouco difícil.
Padre Giancarlo Fontana, 72 anos
Claro que fiquei muito surpreso quando aquele casal, jovem demais, veio até a igreja para que organizássemos a cerimônia. Eu pouco conhecia Lukás Jessen-Petersen, e naquele mesmo dia aprendi que sua família, de uma obscura nobreza da Dinamarca, era frontalmente contra a união. Não apenas contra o casamento, mas também contra a Igreja.
Seu pai, baseando-se em argumentos científicos realmente incontestáveis, dizia que a Bíblia, onde toda a religião está baseada, na verdade não era um livro — mas uma colagem de 66 manuscritos diferentes, onde não se conhece nem o verdadeiro nome, nem a identidade do autor; que entre o primeiro e o último livro escrito se passaram quase mil anos, mais do que o tempo em que a América foi descoberta por Colombo. E que nenhum ser vivo em todo o planeta — dos macacos aos pássaros — precisa 175
de dez mandamentos para saber como comportar-se. Tudo que importa é que sigam as leis da natureza, e o mundo se manterá em harmonia.
Claro que leio a Bíblia. Claro que sei um pouco de sua história. Mas os seres humanos que a escreveram foram instrumentos do Poder Divino, e Jesus forjou uma aliança muito mais forte que os dez mandamentos: o amor. Os pássaros, os macacos, seja lá de que criatura de Deus estivermos falando, obedecem aos seus instintos e seguem apenas aquilo que está programado. No caso do ser humano, as coisas ficam mais complicadas porque ele conhece o amor e as suas armadilhas.
Pronto. Já estou eu fazendo de novo um sermão quando na verdade devia estar falando do meu encontro com Athena e Lukás. Enquanto conversava com o rapaz — e eu digo conversar, porque não pertencemos à mesma fé, e portanto não estou submetido ao segredo da confissão, soube que, além do anticlericalismo que reinava em casa, havia uma imensa resistência pelo fato de Athena ser estrangeira. Tive vontade de pedir que citasse pelo menos um trecho da Bíblia, onde não está nenhuma profissão de fé, mas um alerta ao bomsenso:
Perdão. De novo começo a citar a Bíblia, e prometo que irei me controlar a partir de agora. Após a conversa com o rapaz, passei pelo menos umas duas horas com Sherine — ou Athena, como preferia ser chamada.
Athena sempre me intrigou. Desde que começou a freqüentar a igreja, me parecia ter um projeto muito claro em mente: tornar-se santa. Disse-me que, embora seu namorado não soubesse, pouco antes da guerra civil estourar em Beirute tivera uma experiência muito semelhante à de Santa Teresa de Lisieux: tinha visto sangue nas ruas. Podemos atribuir tudo isso a um trauma de infância e adolescência, mas o fato é que tal experiência, conhecida como “a possessão criativa pelo sagrado”
acontece com todos os seres humanos, em maior ou menor escala. De 176
repente, por uma fração de segundo, sentimos que toda a nossa vida está justificada, nossos pecados perdoados, o amor sempre é mais forte, e pode nos transformar definitivamente.
Mas também é neste momento que temos medo. Entregar-se por completo ao amor, seja ele divino ou humano, significa renunciar a tudo — inclusive ao seu próprio bem-estar, ou sua própria capacidade de tomar decisões. Significa amar no mais profundo sentido da palavra. Na verdade, não queremos ser salvos da maneira que Deus escolheu para nos resgatar: queremos manter o absoluto controle de todos os passos, ter plena consciência de nossas decisões, sermos capazes de escolher o objeto de nossa devoção.
Com o amor não é assim — ele chega, instala-se, e passa a dirigir tudo. Só mesmo almas muito fortes deixam-se levar, e Athena era uma alma forte.
Tão forte que passava horas em profunda contemplação.
Tinha um dom especial para a música; diziam que dançava muito bem, mas como a Igreja não é um local apropriado para isso, costumava trazer seu violão todas as manhãs, e ficar pelo menos algum tempo cantando para a Virgem, antes de ir para a universidade.