– Três dias de jejum total não ajudam a embelezar ninguém, Watson. Quanto ao resto, não existe nada que uma boa esponja não consiga curar... Com vaselina na testa, beladona nos olhos e crostas de cera nos lábios a gente consegue produzir um bom efeito. Disfarce é um assunto sobre o qual eu já pensei em escrever uma monografia. Uma conversinha de vez em quando sobre meias-coroas, ostras ou qualquer outro assunto esquisito pode produzir um efeito convincente de delírio.
– Mas por que não deixou que eu me aproximasse de você quando, na verdade, não havia perigo de infecção?
– Você ainda pergunta, meu caro Watson? Acredita que eu não tenha respeito pelos seus dotes médicos? Eu podia imaginar que, com seu julgamento perspicaz, você iria acreditar que um homem agonizante, embora fraco, não apresentasse aumento de temperatura nem pulso? Eu conseguiria enganar você a uns 3 metros de distância. Se não conseguisse, quem traria o sr. Smith ao alcance? Não, Watson, eu não mexeria naquela caixinha. Você mesmo pode ver, se olhar de lado, por onde a lâmina afiada pula como um dente de víbora quando a abrimos. Eu diria que o pobre Savage, que se interpôs entre o monstro e a herança, foi morto de forma semelhante. Mas minha correspondência é muito variada, como você sabe, e eu fico sempre em guarda com relação aos pacotes que me chegam. Mas ficou claro para mim que somente fingindo que ele tivera êxito na sua tentativa é que eu poderia conseguir uma confissão de culpa. Representei o papel com a perfeição de verdadeiro artista. Obrigado, Watson, ajude-me a vestir o casaco. Assim que terminarmos tudo na delegacia, creio que alguma coisa bem nutritiva no Simpson não seria inconveniente.
o caso do desaparecimento de lady frances carfax
– Mas por que turco? – perguntou Sherlock Holmes, olhando fixamente para minhas botas. Eu estava deitado em uma cadeira de vime, e meus pés esticados haviam atraído sua atenção sempre vigilante.
– Inglês! – respondi com certa surpresa. – Eu as comprei em Latimer, na Oxford Street.
Ele sorriu com uma expressão de paciência entediada.
– O banho! – ele disse. – O banho! Por que o debilitante e caro banho turco em vez do revigorante artigo caseiro?
– É porque, nesses últimos dias, eu me senti velho e reumático. Um banho turco é o que chamamos, na medicina, de uma alternativa – um novo ponto de partida, um purificador do sistema. A propósito, Holmes, não tenho dúvida de que a relação
entre minhas botas e o banho turco é óbvia para uma mente lógica, mas eu ficaria grato se você a explicasse para mim.
– A seqüência do raciocínio não é muito difícil, Watson – ele disse, dando uma piscadela maliciosa. – Pertence à mesma categoria elementar de dedução que eu precisaria explicar se lhe perguntasse quem estava no carro com você hoje de manhã...
– Eu não acho que um novo exemplo seja uma explicação – respondi com certa aspereza.
– Bravo, Watson! Uma reclamação digna e lógica. Deixe-me ver, quais são os pontos? Vejamos, em primeiro lugar, o último. O táxi. Observe que você tem borrifos na manga esquerda e no ombro do seu casaco. Se você tivesse se sentado no meio, com toda a certeza não os teria e, caso os tivesse, seriam simétricos. Portanto, fica claro que você se sentou de um lado. Também está claro que tinha um companheiro.
– Isto é evidente.
– Tremendamente corriqueiro, não?
– Mas, e as botas e o banho turco?
– Também infantis. Você tem o hábito de amarrar suas botas de um certo jeito. Agora eu as vejo amarradas com um laço duplo e caprichado, o que não é o seu modo habitual. Assim você as tirou. Quem as arrumou para você? Um sapateiro ou o rapaz que trabalha no banho turco. Não me parece ser o sapateiro, pois suas botas são praticamente novas. Então, o que resta? O banho. Fácil, não? Mas, por isso tudo, o banho turco serviu para alguma coisa.
– Para quê?
– Você disse que tomou o banho porque precisa de uma mudança. Deixe-me sugerir-lhe que faça uma. Que tal Lausanne, meu caro Watson, com passagens de primeira classe e todas as despesas pagas nababescamente?
– Esplêndido! Mas, por quê?
Holmes recostou-se na poltrona e tirou o caderninho do bolso.
– A mulher sem amigos e nômade constitui uma das classes mais perigosas do mundo. Ela é a mais inofensiva e freqüentemente a mais útil dos mortais, mas quase sempre se torna a incitadora de crimes nas outras pessoas. É um pássaro migratório, tem meios suficientes para se mudar de um país para outro, e de um hotel para outro. Freqüentemente fica perdida num labirinto de pensões e hospedarias humildes. É uma galinha perdida num mundo de raposas. Quando desaparece, ninguém sente sua falta. Temo que algo de ruim tenha acontecido com lady Frances Carfax.
Fiquei aliviado quando ele passou do geral para o particular. Consultou suas anotações.