– Exatamente – eu disse. – Um bom advogado pode apresentá-lo como um gesto de autodefesa. Talvez haja centenas de crimes atrás disso, mas só este pode ser julgado.
– Ora, ora – disse Baynes, todo animado. – Creio que a lei é mais do que isso. Autodefesa é uma coisa. Atrair um homem a sangue-frio com o intuito de matá-lo é outra, apesar do medo que se possa ter dele. Não, não, todos nós ficaremos gratificados quando tivermos os habitantes de High Gable no próximo júri de Guilford.
É uma questão de história, no entanto, que ainda demorasse algum tempo até que o Tigre de San Pedro encontrasse seus executores. Astuto e audacioso, ele e seu companheiro despistaram seus perseguidores, entrando pela porta da frente de uma casa na Edmonton Street e saindo pela dos fundos na praça Curzon. Nunca mais foram vistos na Inglaterra. Uns seis meses depois, o marquês de Montalva e o sr. Rulli, seu secretário, foram mortos nos seus quartos no Hotel Escurial, em Madri.
O crime foi atribuído à Organização Niilista e seus autores jamais foram presos.
O inspetor Baynes nos visitou em Baker Street com um retrato falado do rosto moreno do secretário e as feições autoritárias, olhos negros e magnéticos, sobrancelhas espessas do seu chefe. Não tivemos dúvida de que, embora tardia, fora feita justiça.
– Um caso confuso, meu caro Watson – disse Holmes, à noite, fumando seu cachimbo. – Você não poderá apresentá-lo naquela forma compacta de que você tanto gosta. Ele abrange dois continentes, dois grupos de pessoas misteriosas e é ainda mais complicado pela presença extremamente respeitável de nosso amigo Scott Eccles, cuja inclusão mostra que o falecido Garcia tinha uma mente planejadora e um instinto de sobrevivência bem desenvolvido. É impressionante pelo simples fato de que, em meio a um verdadeiro emaranhado de possibilidades, nós, juntamente com nosso digno colaborador, o inspetor Baynes, tenhamos mantido nossa mente presa aos fatos essenciais e, desta forma, fôssemos guiados pelo caminho obscuro e tortuoso. Existe ainda algum detalhe que não tenha ficado claro para você?
– Qual o objetivo da volta do cozinheiro?
– Eu acho que a estranha criatura na cozinha pode justificá-la. O homem era um selvagem primitivo, dos confins de San Pedro, e aquilo era o seu fetiche. Quando ele e o companheiro fugiram para o esconderijo preparado – já ocupado, sem dúvida, por algum cúmplice –, seu comparsa o convenceu a abandonar o objeto comprometedor. Mas o coração do mulato estava com o objeto, e ele voltou no dia seguinte, quando, ao sondar pela janela, encontrou o guarda Walters de plantão. Ele esperou mais três dias, e então sua religião, ou sua superstição, fez com que ele tentasse de novo. O inspetor Baynes, com sua astúcia habitual, minimizara o incidente para mim, mas na verdade tinha reconhecido sua importância e deixara uma armadilha, na qual a criatura caiu. Algum outro detalhe, Watson?
– O pássaro esquartejado, o balde de sangue, os ossos carbonizados, o mistério todo daquela cozinha esquisita?
Holmes sorriu enquanto consultava uma anotação no seu caderno.
– Passei uma manhã no Museu Britânico lendo a respeito disso aqui e de alguns outros pontos. Aqui está uma explicação de Eckermann sobre Voduísmo e Religiões Negras:
O verdadeiro seguidor do vodu não faz nada importante sem alguns sacrifícios, cujo objetivo é agradar aos seus deuses impuros. Em casos extremos, esses rituais tomam a forma de sacrifícios humanos, seguidos de canibalismo. As vítimas mais comuns são um galo branco, esquartejado vivo, ou um bode preto, cujo pescoço é cortado e o sangue queimado.
– Agora você vê que nosso amigo selvagem era bem ortodoxo em seus rituais. É grotesco, Watson – acrescentou Holmes, enquanto fechava lentamente seu caderno de anotações –, mas, como eu já tive oportunidade de observar, há apenas um passo entre o grotesco e o horrível.
o caso da caixa de papelão
Ao escolher alguns casos típicos que ilustrem as notáveis qualidades mentais de meu amigo Sherlock Holmes, tenho me esforçado ao máximo para selecionar os que apresentem o mínimo de sensacionalismo, ao mesmo tempo oferecendo um vasto campo para seu talento. Infelizmente, porém, é impossível separar o sensacional do criminoso, e um narrador fica com o dilema de sacrificar detalhes que sejam essenciais ao seu trabalho e, assim, dar uma falsa impressão do problema, ou então deve usar o assunto que o caso, e não a escolha, lhe deu. Com este curto prefácio, volto-me para minhas anotações daquilo que foi uma cadeia de acontecimentos estranhos, embora peculiarmente terríveis.
Era um dia extremamente quente de agosto. Baker Street parecia um forno, e o brilho do sol na fachada de tijolos amarelos da casa em frente à nossa chegava a doer nos olhos. Era difícil acreditar que aquelas paredes eram as mesmas que pareciam