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E eu dormia sem sono, desviado já do que via a sentir, crepúsculo de mim mesmo, som de água entre árvores, calma dos grandes rios, frescura das tardes tristes, lento arfar do peito branco  do sono de infância da contemplação.

199.

A doçura de não ter família nem companhia, esse suave gosto como o do exílio, em que sentimos o orgulho do desterro esbater-nos em volúpia incerta a vaga inquietação de estar longe — tudo isto eu gozo ao meu modo, indiferentemente. Porque um dos detalhes característicos da minha atitude espiritual é que a atenção não deve ser cultivada exageradamente, e mesmo o sonho deve ser olhado alto, com uma consciência aristocrática de o estar existir. Dar demasiada importância ao sonho seria dar demasiada importância, afinal, a uma coisa que se separou de nós próprios, que se ergueu, conforme pôde, em realidade, e que, por isso, perdeu o direito absoluto à nossa delicadeza para com ela.

200.

A vulgaridade é um lar. O quotidiano é materno. Depois de uma incursão larga na grande poesia, aos montes da aspiração sublime, aos penhascos do transcendente e do oculto, sabe melhor que bem, sabe a tudo quanto é quente na vida, regressar à estalagem onde riem os parvos felizes, beber com eles, parvo também, como Deus nos fez, contente do universo que nos foi dado e deixando o mais aos que trepam montanhas para não fazer nada lá no alto.

Nada me comove que se diga, de um homem que tenho por louco ou néscio, que supera a um homem vulgar em muitos casos e conseguimentos da vida. Os epiléticos são, na crise, fortíssimos; os paranoicos raciocinam como poucos homens normais conseguem discorrer; os delirantes com mania religiosa agregam multidões de crentes como poucos (se alguns) demagogos as agregam, e com uma força íntima que estes não logram dar aos seus sequazes. E isto tudo não prova senão que a loucura é loucura. Prefiro a derrota com o conhecimento da beleza das flores que a vitória no meio dos desertos, cheia de cegueira da alma a sós com a sua nulidade separada.

Que de vezes o próprio sonho fútil me deixa um horror à vida interior, uma náusea física dos misticismos e das contemplações. Com que pressa corro de casa, onde assim sonhe, ao escritório; e vejo a cara do Moreira como se chegasse finalmente a um porto. Considerando bem tudo, prefiro o Moreira ao mundo astral; prefiro a realidade à verdade; prefiro a vida, vamos, ao mesmo Deus que a criou. Assim ma deu, assim a viverei. Sonho porque sonho, mas não sofro o insulto próprio de dar aos sonhos outro valor que não o de serem o meu teatro íntimo, como não dou ao vinho, de que todavia me não abstenho, o nome de alimento ou de necessidade da vida.

201.

Desde antes de manhã cedo, contra o uso solar desta cidade clara, a névoa envolve num manto leve que o sol foi crescentemente dourando, as casas múltiplas os espaços abolidos, os acidentes da terra e das construções. Chegada, porém, a hora alta antes do meio-dia — começou a desfiar-se  a bruma branda, e, em hálitos de sombras de véus, a cessar imponderavelmente. Pelas dez horas da manhã só um ténue mau-azular do céu revelava que a névoa fora.

As feições da cidade renasceram do escorregar da máscara do velamento. Como se uma janela se abrisse, o dia já raiado raiou. Houve uma leve mudança nos ruídos de tudo. Apareceram também. Um tom azul insinuou-se até nas pedras das ruas e nas auras impessoais dos transeuntes. O sol era quente, mas ainda humidamente quente. Coava-o invisivelmente a névoa que já não existia.

O despertar de uma cidade, seja entre névoa ou de outro modo, é sempre para mim uma coisa mais enternecedora do que o raiar da aurora sobre os campos. Renasce muito mais, há muito mais que esperar, quando, em vez de só dourar, primeiro de luz obscura, depois de luz húmida, mais tarde de ouro luminoso, as relvas, os relevos dos arbustos, as palmas das mãos das folhas, o sol multiplica os seus possíveis efeitos nas janelas, nos muros, nos telhados — nas janelas tanto, nos muros cores diferentes, nos telhados tons vários — grande manhã diversa a tantas realidades diversas. Uma aurora no campo faz-me bem; a aurora na cidade bem e mal, e por isso me faz mais que bem. Sim, porque a esperança maior que me traz tem, como todas as esperanças, aquele travo longínquo e saudoso de não ser realidade. A manhã do campo existe; a manhã da cidade promete. Uma faz viver; a outra faz pensar. E eu hei de sempre sentir, como os grandes malditos, que mais vale pensar que viver.

202.

Atrás dos primeiros menos-calores do estio findo vieram, nos acasos das tardes, certos coloridos mais brandos do céu amplo, certos retoques de brisa fria que anunciavam o outono. Não era ainda o desverde da folhagem, ou o desprenderem-se das folhas, nem aquela vaga angústia que acompanha a nossa sensação da morte externa, porque o há de ser também a nossa. Era como um cansaço do esforço existente, um vago sono sobrevindo aos últimos gestos de agir. Ah, são tardes de uma tão magoada indiferença, que, antes que comece nas coisas, começa em nós o outono.

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